sábado, 18 de setembro de 2021


18 DE SETEMBRO DE 2021
J.J. CAMARGO

O FUTURO QUE ESCOLHERAM POR NÓS

É curioso como o turbilhão de mudanças que nos acompanham, e às vezes nos atropelam, são embaçados na nossa percepção, pela simples razão de estarmos indo juntos com a mudança, o que empresta uma naturalidade que nos choca quando, logo adiante, nos defrontamos com a opinião isenta de alguém que tem uma visão mais holística do mundo, ou seja, de um filósofo.

Isso ocorre quando lemos Byung-Chul Han, um sul-coreano de 62 anos que há mais de uma década vive na Alemanha, onde é professor de filosofia na Universidade de Berlim, e que tem várias obras lançadas no Brasil pela editora Vozes. Difícil encontrar num livro pequeno (quase um pocket book) tantas ideias originais, na análise desconcertante do que processamos sem perceber que aquilo era relevante porque revelava uma tendência transformadora dos anos que se seguiram à Segunda Guerra.

A partir de 1946, com o início da Guerra Fria, passamos a viver a Sociedade Moderna, também chamada Sociedade Disciplinar, descrita por Michel Foucault. Essa foi, como nenhuma outra, a era da polarização entre o bom e o mal, em que a luta permanente visava à destruição do outro, como afirmação do poder. Foi o tempo do macarthismo nos EUA, das ditaduras militares na América do Sul e da birra para ver qual das forças dominantes tinha melhores condições de aniquilação global. Os dois lados em disputa gastaram na aquisição de armas letais fortunas que poderiam ter varrido a fome do mundo. Várias vezes a certeza de que se houvesse confronto ninguém sobreviveria foi, paradoxalmente, o único instrumento para a paz.

Na Sociedade Disciplinar de Foucault, as revoltas e os protestos eram constantes, porque sempre havia um inimigo de plantão a exigir destruição. Byung-Chul Han, chamou esta sociedade de Imunológica, numa analogia com nosso sistema de proteção interna, indispensável no combate aos agressores orgânicos.

A partir da queda do muro de Berlim, os conceitos não apenas se modificaram, mas o fizeram numa velocidade sem precedentes, com inegáveis progressos de um lado e assustadores esvaziamentos de valores éticos do outro, justificando o conceito de mundo líquido, de Zygmund Bauman.

Na virada do século, sacramentada a dissolução da União Soviética como força política, inicia-se, na visão de Han, a Sociedade Pós-Moderna, reconhecida como a Sociedade do Desempenho. Neste novo modelo, as micropenalidades impostas pela sociedade dita civilizada foram progressivamente substituídos pelos códigos individuais de autopenalização, interna. Nunca se atribuiu tanto valor às escolhas de cada um. Em decorrência disso, crescia a ideia de atribuirmos à nossa iniciativa pessoal o que conquistamos ou desperdiçamos. O exemplo mais emblemático dessa mudança conceitual foi o slogan da campanha de Obama:"Sim, nós podemos!".

A figura do chefe foi perdendo importância à medida que nos tornamos patrões de nós mesmos. A transferência aos mais jovens desse tipo de pressão fez com que eles passassem a viver o desconforto da autocensura. Se estava determinado que "se eu quiser eu consigo", todo o fracasso significava que, ou eu não quis o bastante, ou simplesmente sou incapaz.

Esse modelo social que transformou os indivíduos em gestores de seus próprios destinos induziu a uma sensação inicial de maior liberdade, mas que era ilusória, porque, se a competição era dele com ele mesmo, em algum momento teria que assumir que suas decepções e fracassos eram impostas por despreparo, falta de perseverança ou simplesmente preguiça. Não ter em quem por a culpa virou uma fonte de enorme ansiedade.

O muito tentar e o pouco conseguir (porque em geral somos menos do que gostaríamos) produziu o que Byung-Chul Han chamou de a Sociedade do Cansaço, responsável por doenças neuronais como estresse, déficit de atenção, burnout, isolacionismo e, numa condição extrema, pelo suicídio. E então, de repente, pareceu bem razoável o que era só uma graça o meme de um matuto tentando explicar as mudanças: "Se é pra mudar que seja pra melhor, porque não tava bom, tava ruim, tava bem ruim, mas agora parece que piorou!".

J.J. CAMARGO

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