segunda-feira, 25 de outubro de 2021


Amor, verdadeiro amor

Não consigo entender todo esse prestígio do amor romântico. As músicas, por exemplo. Noventa por cento delas são sobre o amor romântico. No caso das sertanejas, cem por cento. Houve um tempo em que se dizia que a música sertaneja era "música de caminhoneiro". Agora imagine um caminhoneiro típico, dirigindo um Fenemê gigantesco, de camisa de física e palito no canto da boca, envolto em uma nuvem de lágrimas enquanto ouve o rádio da carreta.

É assim. Os caminhoneiros são sensíveis.

Todo mundo é sensível. Os filmes mais incensados são sobre o amor romântico. Não estou nem falando das comédias românticas, que são bobinhas. Estou falando do dramalhão. Doutor Jivago. Até hoje, as pessoas que assistiram a Doutor Jivago uivam para a Lua quando ouvem o Tema de Lara. Nos anos 1970, homens e mulheres adultos saíam do cinema vermelhos e fungando depois de ver Love Story. E, cá para nós, que filmezinho bem chato.

O que seria da poesia se não houvesse o amor romântico como tema? "De tudo, ao meu amor serei atento antes..."

É um exagero. Até porque esse amor romântico não é amor; é paixão. Um sentimento efêmero. Está cientificamente provado que a paixão dura, no máximo, um ano e meio. A não ser, é claro, que o relacionamento tenha fracassado antes. Aí o amante frustrado pode ficar remoendo e dourando aquele sentimento por décadas. Só a paixão fracassada é eterna.

Uma arte que fosse realmente realista abordaria os temas que são de fato importantes para os seres humanos. Tipo: a glândula adrenal. Recentemente descobri, por experiência própria, a extensão da relevância da glândula adrenal. Por que nenhum roqueiro canta:

"A glândula adrenal

É bem pequeninha

No entanto

Ela é nossa amiguinha

A glândula adrenal

É muito legal

Eu fico mal sem minha glândula adrenal"?

Mas, não. Ninguém dá bola para a glândula adrenal. Só falam do coração, coração, coração, e no sentido emocional, nunca como uma câmara muscular oca com quatro cavidades, sendo elas dois ventrículos e dois átrios.

A arte nunca dá atenção aos nossos órgãos internos, mas eles são os bens mais importantes que temos. Ninguém saberia viver sem eles. Queria ver o Roberto Carlos entoando, em vez de "eu te amo, eu te amo, eu te amo", uma ode a algo que é verdadeiramente fundamental como: "Papila, papila, papila gustativa...".

O amor romântico, depois de realizado, pode até se transformar de paixão em amor real, dois velhinhos de mãos dadas caminhando pela praia e tudo mais. Certo. Isso é bom. Mas não merece músicas, porque não vicejam, numa cena dessas, as labaredas da paixão. Há ali apenas a ponderação e a sabedoria, e a arte não gosta de ponderação e sabedoria. A arte gosta de ardores. Eu, não. Ah, não. Eu sei o que faz a diferença na vida. Oh, minhas queridas células, minhas amadas moléculas, meus tecidos, minhas fibras, minhas rótulas e meus hormônios, vocês são esquecidos pelo mundo, mas eu os amo com todo o meu ser, e o amor é fogo que arde sem se ver.

DAVID COIMBRA 

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