quarta-feira, 5 de junho de 2024


05 DE JUNHO DE 2024
MÁRIO CORSO

Abobados da enchente

O historiador Sérgio da Costa Franco conta que a expressão "abobado da enchente" surgiu após a tragédia de 1941. Referia-se a pessoas que perderam tudo na enchente e andavam estupefatas pela cidade, de tal maneira que pareciam sofrer de deficiência mental. Essa expressão cruel, depois estendeu-se a quem cometia uma tolice.

Os traumatizados nunca foram bem tratados. As primeiras palavras usadas para estresse pós-traumático foram: shell shock, criadas nas trincheiras da Primeira Guerra. Shell por designar cápsula de bombas, mas o sentido é de choque de bombardeio. Do lado alemão falavam em Schreckneurose, neurose do horror.

Os soldados traumatizados tinham seus corpos paralisados, mutismo, cegueira, surdez, tiques, confusão mental, tudo isso sem lesão corporal. Eram tratados como degenerados, seres sem caráter forte e sem capacidade de autocontrole.

A Inglaterra proibiu o uso da expressão em qualquer relatório oficial. Os outros países não se saíram melhor. Alguns soldados foram fuzilados como punição exemplar. Vieram outras guerras e pouca coisa mudou.

O que mudou foi a impossibilidade de esconder que soldados durões, oficiais maduros, bombeiros e policiais preparados para situações de risco também sofrem de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Não se trata de caráter fraco, mas da reação à violência do evento.

Como o cérebro é ao mesmo tempo software e hardware, mudanças no comportamento têm um reflexo na arquitetura cerebral. Os neurologistas encontraram: tomografias de traumatizados mostram atrofia do hipocampo. A vivência de um trauma provoca um desarranjo orgânico.

Não suportamos ver num traumatizado o pavor pelo qual passou. Nosso gatilho para angústia é sensível, tememos ser capturados pelo desamparo extremo que ele viveu. Detestamos saber que existem eventos psíquicos incicatrizáveis. Ele é testemunha de que o horror pode não passar.

Infelizmente, teremos traumatizados pela enchente. Pessoas que estiveram ilhadas correram risco de vida. Ficaram dias sem água e comida, sem saber se haveria ajuda. A dificuldade está em que suas redes de apoio afetivo, família e vizinhos, estão em situação similar. O mínimo que lhes devemos é levá-los a sério em seu sofrimento e não estigmatizá-los mais uma vez.

Espero que a Porto Alegre de hoje se redima de um dia ter criado essa execrável expressão. Está em nossas mãos fazer diferente.

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