quinta-feira, 31 de janeiro de 2013



31 de janeiro de 2013 | N° 17329
EDITORIAIS ZH

CONJUNTO DE OMISSÕES

Estão reunidas as principais evidências de que a tragédia de Santa Maria resultou de um conjunto de negligências. Também é inquestionável que as omissões e transgressões constatadas até aqui caracterizam crimes graves. Resta apenas, a partir das investigações, tipificar os delitos cometidos e apontar seus responsáveis, para que o inquérito seja encaminhado à Justiça e se faça a reparação possível. Até lá, tudo o que não deveria ocorrer já está acontecendo, que é o jogo de empurra entre autoridades municipais e estaduais e a tentativa de politização do caso.

É evidente que os proprietários da boate, os artistas, a prefeitura e os bombeiros terão de se submeter a avaliações da polícia e do Ministério Público, com a decisiva colaboração da imprensa. Negar-se a admitir falhas, tentar transferi-las a outras instituições ou adotar atitudes diversionistas, como vem ocorrendo desde o início das investigações, são posturas que apenas tumultuam as sindicâncias.

É óbvio que os proprietários da boate devem ser os primeiros a responder por seus atos. A responsabilidade empresarial, por princípio, independe de ações fiscalizadoras. Qualquer atividade deve se submeter às leis e normas civilizatórias que regulam negócios, relações humanas e todas as formas de convivência coletiva.

A origem da tragédia está, portanto, na conduta inescrupulosa dos que pensaram em obter lucros a qualquer custo. Já está provado que a boate tinha um teto com revestimento de espuma instalado à revelia das normas de segurança e depois da última vistoria pelos bombeiros e que nem mesmo os extintores funcionavam – fora outras sérias deficiências de segurança.

Se essas falhas combinadas criaram o ambiente que provocou a tragédia, os órgãos responsáveis pela fiscalização falharam em suas atribuições. É aqui que o setor público aparece, não como investigador, mas agora como investigado. A prefeitura de Santa Maria e os bombeiros, os principais envolvidos nas suspeitas de omissão, não podem, sob o argumento de que defendem os pontos de vista corretos, retardar ou fornecer informações pela metade e tentar ocultar documentos.

Nesse contexto, Ministério Público, imprensa e cidadãos têm que continuar pressionando para que os relapsos e gananciosos sejam responsabilizados e também para que o natural sentimento de revolta da população não derive para linchamentos e injustiças.

Uma investigação rigorosa e transparente é o único caminho para evitar mal-entendidos e, na sequência dos desdobramentos da tragédia, contribuir para que se esclareçam outros casos. É no mínimo inusitada, por exemplo, a situação de seis casas noturnas de Porto Alegre que, segundo a prefeitura, funcionam com liminar da Justiça, depois de terem sido interditadas pela fiscalização. A situação das boates deve ser reavaliada, e com urgência, para que nenhuma instituição corra o risco de ser avalista de imprudências como as que levaram à tragédia de domingo.



31 de janeiro de 2013 | N° 17329
ARTIGOS - Pedro Westphalen*

Compromisso com o futuro

Dentre as convicções que formei na vida pública, a maior e a mais profunda é a de que o parlamento expressa a diversidade de uma sociedade e a maturidade política de um povo.

É no Legislativo, dos debates nas comissões; do exercício do diálogo nos gabinetes e em plenário; das vozes alçadas da tribuna, que se manifestam, permanentemente, os anseios de uma sociedade. O Poder Legislativo é, em essência, a dinâmica do diverso. Um mosaico de ideias que cumpre seu destino ao rechaçar rupturas insuperáveis, resultando na garantia aos diretos individuais e coletivos. Assim é que tal poder deve ser preservado.

Penso que o parlamento gaúcho tem avançado neste sentido. Nele temos aprofundado as relações democráticas, sem calar diversidades. E isso se demonstra no simbolismo de minha posse, quando assume uma Mesa que contempla todas as correntes políticas, fato que vem se repetindo nas últimas legislaturas.

Sem descuidarmos da independência dos três poderes – porque acreditamos na harmonia da representação e da participação democráticas – queremos contribuir para que o nosso Estado encontre o seu verdadeiro tamanho. Nem um Estado máximo, centralizador de iniciativas; nem um Estado mínimo, omisso em suas responsabilidades constitucionais.

Sei que esta missão exigirá de mim novas e redobradas responsabilidades. Pretendo desempenhá-las, todas, sem, entretanto, esquecer os compromissos assumidos como deputado. Notadamente a bandeira da saúde.

Por saber que o tema da saúde não se encerra na necessidade da reformulação na dinâmica do SUS, é que iremos contribuir para o resgate do passivo da desassistência. Que vai desde uma simples consulta, passando por internações, cirurgias eletivas, e até mesmo as de urgência, às quais o povo tem direito, mas não está tendo acesso.

Outra área que terá atenção especial será a educação. Por ser, cada vez mais, a maior, a mais moderna e a mais poderosa arma na defesa de um povo. Que nossos corações e mentes estejam abertos para resgatar o papel honorável dos nossos educadores e a excelência dos espaços de saber.

Queremos a modernidade da técnica aliada a profissionais bem remunerados, perseguindo a qualidade do ensino. Por isso, assumimos o compromisso de trabalhar incansavelmente para que iniciativas e projetos na área da educação recebam a atenção que lhes é devida.

No âmbito da parceria que desejamos entre poder público e sociedade civil, iremos considerar os debates e os diagnósticos relativos aos desafios do nosso Estado, tais como a Agenda 2020, o Pacto pelo Rio Grande, a Convergência e o Pacto pela Saúde. Destas iniciativas resultaram documentos coletivos que, com exatidão matemática, apontaram desafios e alternativas para o nosso desenvolvimento.

Não são documentos de governo. Constituem-se, sim, em documentos de Estado, cujo objetivo maior é garantir um crescimento continuado para o Rio Grande.

Por isto, e por sermos líderes políticos transitórios no exercício do poder, precisamos dar continuidade a um plano de futuro. Precisamos criar a cultura do futuro, pois ele já bate à porta. Um futuro do qual nossos filhos, e os filhos dos nossos filhos, são os legítimos credores.

Essa é a nossa maior e mais importante missão.

*PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RS


31 de janeiro de 2013 | N° 17329
CINEMA NA TV POR ASSINATURA | por Daniel Feix

Filmes em destaque na programação de hoje dos canais pagos:

VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO De Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Com Irandhir Santos. Filme rápido, curto, mas absolutamente certeiro. As imagens foram captadas como se fosse um documentário, explorando texturas típicas do Super-8 e do 16mm, entre outras. Só depois foram encaixadas na narrativa sobre um geólogo que aparece apenas narrando suas desventuras pelo sertão nordestino durante o mapeamento de uma área que será inundada devido à criação de uma represa. As imagens são emocionantes, e os personagens, inesquecíveis. Drama, Brasil, 2009, 72min. Canal Brasil, 9h40min.

ATRAÇÃO PERIGOSA (The Town) De e com Ben Affleck. Com Rebecca Hall e Jon Hamm. Antes de se tornar favorito ao Oscar com Argo, Affleck dirigiu este bom thriller sobre um bando de assaltantes que acaba se envolvendo demais com uma ex-refém. Confira: o ator tem talento também na realização. Suspense, EUA, 2010, 125min. HBO HD, 12h35min.

UM DOMINGO QUALQUER (Any Givern Sunday) De Oliver Stone. Com Al Pacino, Dennis Quaid e Cameron Diaz. Falta foco a Stone neste grande apanhado dos bastidores do futebol americano, mas ele mostra o jogo de dentro como raras vezes o cinema conseguiu mostrar. Drama, EUA, 1999, 150min. Max Prime, 17h15min.

SEVEN OS SETE CRIMES CAPITAIS (Se7en) De David Fincher. Com Morgan Freeman, Brad Pitt e Kevin Spacey. Dois policiais, um novato e um veterano, são designados a capturar um serial killer que baseia seus crimes nos sete pecados capitais. Envolvente e assustador, este ótimo exercício de gênero impulsionou a carreira do hoje consagrado David Fincher. Suspense, EUA, 1995, 127min. HBO 2, 18h45min.

RITA CADILLAC, A LADY DO POVO De Toni Venturi. É impressionante a maneira como a ex-chacrete abre o coração diante das câmeras do diretor Toni Venturi (de Cabra Cega e do mais recente Estamos Juntos). O mergulho na intimidade de Rita Cadillac revela uma sex-symbol já nem tão segura de si e, por isso mesmo, mais atraente em sua condição de personagem da cultura popular. Documentário, Brasil, 2010, 75min. Canal Brasil, 22h.

ZAZIE NO METRÔ (Zazie dans le Métro) De Louis Malle. Com Catherine Demongeot e Philippe Noiret. Um raro Malle não polêmico, este filme datado do início de sua carreira sucedeu a Amantes (1958), um de seus títulos mais provocativos. Trata-se de uma espécie de fábula sobre uma garota do interior que descobre Paris e os parisienses, em suas nem sempre estimulantes idiossincrasias. Comédia, França/Itália, 1960, 89min. Telecine Cult, 22h.

PSICOSE (Psycho) De Alfred Hitchcock. Com Anthony Perkins e Janet Leigh. O que ainda não foi dito sobre este que é um dos melhores suspenses de terror já feitos? Há muitos causos sobre a produção, entre eles aquele que aponta que Hitchcock teria imaginado a clássica sequência do chuveiro antes do próprio filme e o que indica que o cineasta teria comprado anonimamente os direitos do livro de Robert Bloch e em seguida trabalhado para tirar de circulação todos os seus exemplares, de modo que o final da história não fosse conhecido do público antes de seu lançamento.

Como uma lenda só se constrói a partir de uma verdade, mesmo que remota, pode-se dizer que esta historieta dos direitos autorais, falsa ou verdadeira, existe porque o desfecho, de fato, deixa os espectadores de primeira viagem com seus respectivos queixos no chão. Um dos grandes lances de Hitchcock, aqui, é exatamente a forma de trabalhar as viradas da trama, surpreendendo a plateia.

 No início, por exemplo, parece que Psicose vai narrar a fuga de Marion (Janet Leigh). Quando ela se hospeda no Bates Motel e o foco se volta para seu perturbado atendente Norman Bates (Anthony Perkins), o público já está totalmente fisgado. Suspense, EUA, 1960, 108min. Telecine Cult, 15h10min.


31 de janeiro de 2013 | N° 17329
PAULO SANT’ANA

O perigo de viver

Escrevi inúmeras vezes neste espaço que era perigosíssimo ser jornalista e que quem exercia esta profissão corria todos os dias grandes riscos.

Vejo só agora que foi uma bobagem o que escrevi: não é perigoso ser jornalista, perigoso é viver.

Vou dar um exemplo: quem calcularia que os mais de 230 jovens que morreram na boate em Santa Maria, quando se dirigiram para a festa, estavam correndo risco? Rigorosamente, ninguém imaginava que era perigoso ir a uma festa.

E, no entanto, como os fatos provaram, foi terrivelmente perigoso.

É perigoso casar-se e ainda perigoso ficar solteiro. É perigoso, portanto, viver.

Não há nada mais perigoso do que entrar no trânsito dirigindo. Mas ficar em casa sem dirigir é perigoso também, pode a casa ser tragada pela terra, como tantas vezes aconteceu, como anteontem aconteceu na China.

É perigoso ser autoridade e mais ainda que perigoso é não ser autoridade e ser governado como súdito.

É perigoso acordar com a notícia de que os combustíveis tiveram seus preços aumentados. E já pensaram no perigo que encerrava para o Grêmio o jogo que ele teria à noite contra a LDU?

É perigosíssimo ser velho, mas a juventude encerra mil perigos ao seu redor.

É perigoso apaixonar-se, mas às vezes é ainda mais perigoso não amar ninguém, pode-se morrer de tédio.

É perigoso fazer a assinatura de um jornal, tomando conhecimento de tragédias terríveis, mas não assinar o jornal encerra perigos ainda maiores, entre os quais o de alienar-se do mundo, o que é fatal.

Já fiz muitas ressonâncias magnéticas com contraste na veia para cuidar da minha saúde. Sempre entreguei minhas veias para o contraste com desconfiança.

Pois não é que anteontem morreram três pessoas em Campinas pelo motivo direto de que foram submetidas a contrastes em ressonâncias magnéticas?

Ou seja, perigoso é viver. Vou mais longe, viver é mais perigoso que morrer.

O único perigo que a morte encerra é de morrermos amanhã e sermos esquecidos para sempre.

Eu me tracei o dever de nunca esquecer, jamais, os mortos, como os de Santa Maria.


31 de janeiro de 2013 | N° 17329
L. F. VERISSIMO

Muito Tony Kushner

Lincoln é a segunda colaboração do Steven Spielberg com o dramaturgo Tony Kushner. A primeira foi Munich, em que o roteiro de Kushner e de um coautor incluía crises de consciência dos agentes de Israel encarregados de vingar o massacre de atletas judeus por palestinos na Olimpíada de Munique de 1972 e impediu que o filme fosse apenas uma glorificação da vingança.

Kushner é judeu, como Spielberg, mas é um conhecido crítico do sionismo e da política de Israel em relação aos palestinos e um esquerdista ativo e combativo. Spielberg é um dos “liberais”, no sentido anglo-saxão da palavra, de Hollywood, que votam nos democratas, fazem filmes sobre causas nobres como a dos direitos civis de minorias e podem ser definidos como da esquerda confortável.

A parceria Spielberg/Kushner é insólita em outro sentido. Spielberg faz cinemão – bom cinemão, mas cinemão – e Kushner é o mais notório autor de vanguarda do teatro americano, com previsível desdém pelo teatro convencional e pelas grandes produções do cinema comercial.

Uma curiosidade: no final da primeira parte da sua peça Anjos na América (as duas partes encenadas juntas tem mais de sete horas de duração), desce no palco um anjo mensageiro para anunciar a vinda do novo milênio e, supõe-se, a purgação dos pecados da América. Sua chegada, numa nuvem colorida, derrubando cenários e acompanhado de raios e música bombástica, é espetacular. Tanto que um dos personagens comenta:

– Muito Steven Spielberg.

Do filme Lincoln, pode-se dizer que é muito Tony Kushner. São espetaculares as atuações de Daniel Day-Lewis, Tommy Lee Jones e Sally Fields, mas há pouco espetáculo do Spielberg. Kushner concentrou-se na capacidade política de Lincoln e no fim a abolição da escravatura é apresentada como um triunfo das suas palavras e da sua personalidade – com um pouco de ajuda de propinas a congressistas.

Há só uma cena, curta, de guerra, no começo do filme. E é tão reticente a direção de Spielberg, que não se vê nem o assassinato de Lincoln, uma cena que presumivelmente permitiria ao diretor dar o seu show. Mas Kushner não deixou. Ficamos sabendo da morte do presidente de ouvir dizer.

Nos Estados Unidos discute-se se Lincoln é de esquerda ou de direita. A esquerda reclama que o filme reforça a ideia de que a História é feita por líderes e heróis excepcionais, a direita reclama que outras causas da Guerra Civil, como a dos direitos estaduais diante da prepotência da União, foram mais importantes do que a escravatura e nem são citadas. Eu acho que o filme seria melhor se o Spielberg tivesse mais solto. Ou então se o Kushner enlouquecesse. Um anjo mensageiro descendo no meio da bancada antiabolicionista do Congresso e anunciando a vinda do Obama, por que não?

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013


MARCELO COELHO

Pureza armada

Qualquer transgressão é apresentada como direito; se roubaram você, responda roubando também

A notícia, que saiu no UOL há algum tempo, tinha me deixado curioso. Alguém em Brasília encaminhou pedido ao Ministério Público para que "O Livro Maldito" (editora BestSeller) tivesse sua venda proibida no país.

Os motivos para essa interdição estariam até mesmo na contracapa do volume. O autor, Christopher Lee Barish, promete ensinar uma série de coisas proibidas.

"Assalte um banco." "Arrombe fechaduras." "Forje a própria morte." "Minta para um polígrafo."

E outras coisas, "muito, mas muito piores", promete a contracapa. Fui ver.

A maior parte das transgressões de "O Livro Maldito" tende para o café pequeno. "Como não limpar o cocô de seu cachorro", "como burlar máquinas de refrigerante" ou "como escapar de ser jurado num tribunal" não constituem objetivos tão diabólicos assim.

Uma seção especial, destinada "a criminosos", promete ensinar os incautos a falsificar dinheiro, a entrar para a máfia e a contrabandear drogas.

Mas basta ler um pouquinho para perceber que o propósito de "O Livro Maldito" é humorístico e que nenhuma das suas informações seria capaz de garantir por mais de meia hora a sobrevivência do leitor no mundo do crime.

O interessante, na verdade, está em ver que tipo de humorismo é esse.

Veja-se como começa o capítulo sobre como enganar uma máquina de refrigerantes.

"Quantas vezes, ao longo da vida, você já foi roubado por uma dessas máquinas?" Elas "passaram a perna em você -e agora está na hora de dar o troco", diz o autor.

Segue-se uma impraticável explicação de como colar uma fita adesiva dos dois lados de uma cédula de dinheiro, deixando um rabicho para puxá-la de volta.

O essencial -e tão tipicamente americano, aliás, quanto o uso cotidiano dessas máquinas- está no gênero de argumentos utilizado pelo autor.

Em resumo, qualquer transgressão é apresentada como um direito legítimo. Se roubaram você, responda roubando também.

Outro exemplo. Se um guarda de trânsito pretende multá-lo por excesso de velocidade, "pergunte sobre o radar dele", recomenda o livro. Isso porque em muitos lugares dos Estados Unidos é lícito exigir do guarda o certificado de aferição do aparelho.

O autor também oferece muitas razões "legítimas" para nos instruir a roubar no jogo de dados. O cassino vive de arrancar nosso dinheiro; "a única maneira boa de se vingar é tomando o dinheiro dele".

As dicas do livro a esse respeito são obviamente delirantes: "pratique jogar dados colocando para cima os números que você quer", e "lance-os de tal maneira que não haja muita rotação".

Ah, bom. Muito obrigado. Agora estou pronto para a desforra.

Tantas reparações imaginárias contra "os verdadeiros ladrões" têm, na verdade, um pressuposto até ingênuo.

A ideia, especialmente estranha para nós brasileiros, é a de que o cidadão é em sua essência honesto e, sobretudo, detentor de direitos. É em defesa desses direitos que ele encontra justificativa para quebrar a lei; a boa notícia está no fato de que, em última análise -como no caso das multas de trânsito-, o próprio sistema judiciário facilita esse tipo de comportamento.

No Brasil, tudo teria de ser escrito ao inverso. Estamos culturalmente preparados para um estado de culpa, e não de inocência. Se apanhados em alguma transgressão, nossa tendência será dizer que todo mundo faz o mesmo.

Nos Estados Unidos, pelo menos através das lentes satíricas de "O Livro Maldito", a atitude é outra: que autoridade tem o guarda para me acusar de alguma coisa?

Sem ser especialmente engraçado, muito menos útil, e menos ainda pernicioso, o livro de Christopher Barish ajuda a entender um pouco dos aspectos mais misteriosos da psique americana.

A partir desse pressuposto da inocência e do recurso à ilegalidade como um direito dos cidadãos, fica mais clara, por exemplo, a estranha atitude de tantos americanos com relação à posse de armas de fogo.

Eles se batem por um direito que, em qualquer outro país, passa por um evidente e patológico desejo homicida. Liberar a compra de metralhadoras? No Brasil ou no Canadá, um "princípio" desses constitui o mais rematado absurdo.

É preciso acreditar muito na própria inocência, sem dúvida, para fazer tanta questão de possuir um arsenal dentro de casa. Dizer-se roubado, fazer-se de vítima, ver o crime nas intenções dos outros -eis, na verdade, um bom caminho para se tornar criminoso também.

coelhofsp@uol.com.br

30/01/2013 - 03h00
Antonio Prata

Todos juntos

Acho que já contei aqui a história, mas a ocasião me permite repeti-la. Eu tinha 18 anos e estava em minha primeira aula de filosofia, na USP. O professor, Renato Janine Ribeiro, nos explicava que no fim do semestre seríamos avaliados por um trabalho individual, cujo limite deveria ser de 8.000 caracteres.

Levantei a mão: "Se estourar um pouquinho esse limite, tudo bem, né?". Janine sorriu e disse algo mais ou menos assim: "O que é 'limite'? É aquilo que não se pode transpor. Mas vejam como são as coisas no Brasil: entre nós, o limite não limita! Repito: o limite é de 8.000 caracteres".

Peço perdão ao filósofo se as palavras não foram exatamente essas. Assim, porém, é que ficaram gravadas na minha memória e é assim que me voltam, quase todo dia, quando me deparo com a nossa ilimitada necessidade de burlar a lei.

Há uma altura máxima para prédios na rota do aeroporto, mas o empreiteiro constrói um "puxadinho", alguns metros acima. A construtora precisa botar de tantos em tantos metros, sob o concreto da rodovia, umas ripas de metal, mas economiza dinheiro aumentando a distância entre elas. Quantas pessoas que compraram a carta de motorista você conhece?

Que têm gato de TV a cabo? Que já subornaram um guarda de trânsito para não ser multado? O avião vai decolar, o comissário de bordo pede para desligarem os celulares, mas o sujeito o ignora solenemente. O avião pousa, o comissário pede aos passageiros para que aguardem sentados até o "apagar do aviso luminoso de atar cintos", mas todo mundo levanta. Não um, não dois: todo mundo --como se respeitar aquele simples sinal luminoso equivalesse a ter a palavra otário escrita na testa.

Um sinal luminoso também piscou na cabine do Fokker 100 da TAM, que taxiava na pista de Congonhas na manhã de 31 de outubro de 1996, alertando sobre um problema no reverso da turbina. O piloto o desligou. O luminoso piscou novamente, novamente foi desligado. Segundo o depoimento de outro piloto, dias mais tarde, esse era o costume: se fossem dar atenção a todo alarme que soava na cabine, nenhuma aeronave saía do chão. Às vezes, ao que parece, alarmes soam à toa. Às vezes, não: 24 segundos depois de decolar, o avião caiu, matando 99 pessoas.

Eu estava saindo para a USP, naquela manhã, quando o telefone tocou. Uma amiga do meu pai queria saber se era verdade que meu tio Duda, irmão da minha mãe e meu padrinho, estava entre os passageiros. Liguei a televisão. Vi a lista. Era verdade.

Nas próximas semanas, o Brasil concentrará suas energias em encontrar os culpados pela tragédia de Santa Maria. É fundamental, se houver culpados (como parece ser o caso), que eles sejam punidos.

É fundamental que as casas de show passem por reavaliações, como já estão passando. Mas se não mudarmos a nossa mentalidade, se não entendermos que as leis são universais, que há procedimentos que precisam ser executados conforme as regras, sem jeitinho, sem gambiarra, em TODAS as esferas, por TODAS as pessoas, as tragédias continuarão acontecendo --e a morte é um limite que nós, brasileiros, por mais espertos que nos julguemos, não somos capazes de transgredir.

antonioprata.folha@uol.com.br


30 de janeiro de 2013 | N° 17328
MARTHA MEDEIROS

Empatia

As pessoas se preocupam em ser simpáticas, mas pouco se esforçam para ser empáticas, e algumas talvez nem saibam direito o que o termo significa. Empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, de compreendê-lo emocionalmente. Vai muito além da identificação. Podemos até não sintonizar com alguém, mas nada impede que entendamos as razões pelas quais ele se comporta de determinado jeito, o que o faz sofrer, os direitos que ele tem.

Nada impede?

Foi força de expressão. O narcisismo, por exemplo, impede a empatia. A pessoa é tão autofocada, que para ela só existem dois tipos de gente: os seus iguais e o resto, sendo que o resto não merece um segundo olhar. Narciso acha feio o que não é espelho.

Ele se retroalimenta de aplausos, elogios e concordâncias, e assim vai erguendo uma parede que o blinda contra qualquer sentimento que não lhe diga respeito. Se pisam no seu pé, reclama e exige que os holofotes se voltem para essa agressão gravíssima. Se pisarem no pé do outro, é porque o outro fez por merecer.

Afora o narcisismo, existe outro impedimento para a empatia: a ignorância. Pessoas que não circulam, não possuem amigos, não se informam, não leem, enfim, pessoas que não abrem seus horizontes tornam-se preconceituosas e mantêm-se na estreiteza da sua existência. Qualquer estranho que possua hábitos diferentes será criticado em vez de respeitado. Os ignorantes têm medo do desconhecido.

E afora o narcisismo e a ignorância, há o mau-caratismo daqueles que, mesmo tendo o dever de pensar no bem público, colocam seus próprios interesses acima do de todos, e aí os exemplos se empilham: políticos corruptos, empresários que só visam ao lucro sem respeitar a legislação, pessoas que “compram” vagas de emprego e de estudo que deveriam ser conquistadas através dos trâmites usuais, sem falar em atitudes prosaicas como furar fila, estacionar em vaga para deficientes, terminar namoros pelo Facebook, faltar compromissos sem avisar antes, enfim, aquelas “coisinhas” que se faz no automático sem pensar que há alguém do outro lado do balcão que irá se sentir prejudicado ou magoado.

É um assunto recorrente: precisamos de mais gentileza etc. e tal. Para muitos, puxar uma cadeira para a moça sentar ou juntar um pacote que alguém deixou cair, basta. Sim, somos todos gentis, mas colocar-se no lugar do outro vai muito além da polidez e é o que realmente pode melhorar o mundo em que vivemos. A cada pequeno gesto diário, a cada decisão que tomamos, estamos interferindo na vida alheia. Logo, sejamos mais empáticos do que simpáticos.

Ninguém espera que você e eu passemos a agir como heróis ou santos, apenas que tenhamos consciência de que só desenvolvendo a empatia é que se cria uma corrente de acertos e de responsabilidade – colocar-se no lugar do outro não é uma simples gentileza que se faz, é a solução para sairmos dessa barbárie disfarçada e sermos uma sociedade civilizada de fato.



30 de janeiro de 2013 | N° 17328
ARTIGOS - Percival Puggina*

Cruel pedagogia

Do alto de seus 20 anos, os jovens contemplam a vida como quem, do alto de uma montanha, observa, extasiado, o mundo ao seu redor. Horizontes amplos, infinitas trilhas e 360 graus de possibilidades. Nessa idade, eu me lembro muito bem, a vida é eterna e a esperança infinita.

Só os avós morrem quando se tem 20 anos. O velório de um jovem é inconcebível ruptura com a ordem natural. Contudo, a morte espreita a juventude com olhos cobiçosos. Enquanto os idosos morrem porque chegou a hora, porque dar adeus à vida terrena é próprio da velhice, os jovens morrem de infinitas maneiras, revelando inesperada vulnerabilidade.

Idosos morrem porque não podem alterar o curso da vitalidade que se extingue. Jovens, porém, morrem desnecessária e superfluamente, por motivos que poderiam ser evitados. Essa é a tragédia das tragédias cotidianas. Ir-se assim, sem que nem por quê? Jovens morrem nas ruas, nas estradas, nas brigas entre gangues, na lenta e dolorosa morte das drogas, nas madrugadas em que a violência espreita, nas infames brigas por motivos fúteis.

Morrem nas aventuras e travessuras, na terra, na água e no ar. Por isso, pais e mães carregam no peito uma incompreendida e permanente aflição. A respiração para quando o telefone toca e para quando o telefone não toca. Paranoicos, nós? Não, não. Simplesmente pais cuidadosos de filhos incautos, que creem haver bebido a imortalidade no cálice da juventude.

As grandes catástrofes carregam em seu script uma pedagogia brutal. Há nelas uma lição sobre o que não fazer. Sua dissonante partitura se faz com notas que pedem atenção e reflexão. Desafortunadamente, numa espécie de autodefesa, cerramos os olhos e os ouvidos. E pouco aprendemos com as lições que nos vêm dos sinistros e dos escombros.

Por isso escrevo com a esperança de que a crudelíssima pedagogia dos fatos do dia 27 mostrem aos nossos jovens que nós, os pais, não somos coroas paranoicos a vislumbrar perigo ali onde tudo indica morar a felicidade e a alegria. Por isso, escrevo confiando em que os jovens não pressuponham que as autoridades fazem sempre, em toda a parte, tudo o que lhes compete para garantir a sua segurança.

Não! Muitas vezes, é o contrário. Por isso escrevo desejando que os jovens, diante de tão sofrida experiência, valorizem o dom maravilhoso da vida como uma dádiva frágil a exigir prudência e atenção. As alegrias dos filhos serão maiores e as aflições dos pais serão menores se, doravante, filhos e pais forem severos fiscais da própria segurança onde quer que estejam.

*ESCRITOR


30 de janeiro de 2013 | N° 17328
ARTIGOS -Nilson Vargas*

A terceira lista

A filha da Mauren, os dois sobrinhos do Betinho, a enteada do Diomar, três amigas da Tayani. Foi assim, carregadas de conexões que formam uma teia de lembranças de amigos e de passagens da minha vida, que as notícias sobre mortos foram chegando.

As dores da minha estimada colega de aula no primário, do meu companheiro de futebol da juventude, do meu colega de faculdade, da minha querida afilhadinha foram se somando para compor a minha dor – que me fez chorar muito nas duas madrugadas que se seguiram ao fato e no trajeto solitário que fiz de carro entre Santa Maria e Porto Alegre na manhã de terça-feira.

Cheguei ao local por volta das 5h da manhã. Não vou me deter em relatos do que vi. Eles já foram dados em textos, fotos, imagens, testemunhos a que desde então todos tiveram acesso. Ali encontrei outro amigo de infância de quem só lembro o apelido: Chico Rico. Militar do BOE, ele acabava de sair de dentro da boate e, depois de um “lembro de ti, sim”, me preveniu de que havia “muita gente morta lá dentro”.

A informação dada pelo parceiro de futsal nas quadras do Clube 21 de Abril, no bairro Itararé, me fez entender que, como jornalista, estava assumindo uma missão numa cobertura ampla e complexa. E, como pessoa, mergulhava num drama àquela altura difícil de dimensionar. Meu desafio pessoal, que creio estar cumprindo: separar a missão do jornalista, que requer equilíbrio e profissionalismo, do drama do santa-mariense, que, em 46 anos de vida, nunca havia visto a sua cidade tão triste.

Pela soma de dramas de pessoas conhecidas, por um drama de alguém que perdeu um filho ou por algum outro motivo, a cidade começava a ser engolfada por uma espiral de sentimentos que, aos poucos, iriam surgindo. Primeiro o terror de quem viveu aquele pesadelo, depois o choque de quem tomou conhecimento, seguido das muitas modalidades de dor que brotaram em cada um e que alimentaram uma onda de solidariedade, esta sim digna de orgulho. E não demorou para germinarem as dúvidas sobre o que teria conduzido àquele episódio horroroso, alimentando, finalmente, a cobrança por investigação, punição e justiça.

Tudo isso em meio a uma dolorosa sequência de reconhecimento de corpos, velórios coletivos, enterros que dilaceravam parentes e amigos. Cenas que transformaram a tragédia de Santa Maria num drama planetário propagado em imagens e notícias. A cidade universitária virara um exemplo de duas situações paradoxais: como não deve ser um local de festas para jovens e como um povo solidário consegue ao menos atenuar o que aquela música descreve como “a dor de arrumar o quarto do filho que já morreu”.

Santa Maria se orgulha de uma lista divulgada todo ano: o listão dos aprovados no vestibular da UFSM. O orgulho é tanto que os nomes são lidos no rádio, um a um, com pausada alegria, em cadeias que chegam a incluir emissoras de SC, PR, MS... Estados que enviam milhares de seus filhos para estudar na cidade. À divulgação do listão se segue uma onda de festas, cumprimentos, alegria, faixas exibidas nas sacadas e janelas das residências.

Na tragédia da boate, outra lista, também lida nas rádios e TVs, desta vez com pausada tristeza. Muitos dos mais de 230 nomes já haviam figurado num listão da UFSM, mas não tiveram a chance de buscar o diploma e tocar a vida em frente.

No abismo de sentimentos que separa o listão dos aprovados da lista dos mortos, somente uma terceira lista, cujo tamanho não se sabe mas cujo prazo de divulgação precisa ser abreviado ao máximo, poderá aplacar o vale de lágrimas e de dor. É a lista dos culpados. Ela não trará de volta os tesouros da Mauren, do Betinho, do Diomar e da Tayani. Mas é o mínimo que o poder público pode fazer em resposta ao que aconteceu e que, mesmo com muito esforço, não será possível esquecer.

*JORNALISTA E SANTA-MARIENSE


30 de janeiro de 2013 | N° 17328
PAULO SANT’ANA

O meu Salieri

Foi divertidíssimo ler a página do David Coimbra de domingo passado em Zero Hora.

Ele escreveu que todos os dias assiste a pessoas serem besuntadas com o adjetivo de gênio, quando na verdade gênio era só o Mozart.

Qualquer criança de colégio sabe que o David se referia aos leitores que me chamam de gênio insistentemente. E isso causa urticária no David, como ele próprio escreveu.

Ele não tolera que chamem de gênio qualquer colega dele de jornal.

Foi bom o David lembrar o célebre compositor Mozart, porque me fez recordar Salieri, o compositor da época que afrontava e não reconhecia Mozart.

É que, com sua renitência à palavra gênio nos dias de hoje, o David acaba se consagrando como o meu Salieri. Eu comparo o Coimbra ao Salieri, que, como o filme Amadeus mostrou, não tolerava que a Europa chamasse Mozart de gênio.

Gozado, eu não me irrito quando leitores chamam o Luis Fernando Verissimo de gênio. E até por isso procurei o Verissimo no outro dia, dou como testemunha a mulher dele, a Lúcia, e disse-lhe que quando o chamam de gênio eu me orgulho por ser 10 vezes mais lido do que ele em ZH, o que no entanto não autoriza ninguém a me chamar de decagênio.

Mas, pensando bem, acho que é justo comparar o David ao Salieri. Porque estou assim reconhecendo que ele está entrando para a história atual no exato lugar do Salieri: o placê do páreo.

É preciso que se diga que Salieri tinha algum talento e um certo brilho, deu azar porque nasceu na época do Mozart.

Só sabem os gremistas da importância do jogo de hoje na Arena. Se o Grêmio vier a tirar dois gols de diferença em vitória sobre a LDU, estará garantido na Libertadores para o próximos meses e ele e a OAS ganharão rios de dinheiro.

Se, no entanto, o Grêmio não se classificar, restará a ele um ano monótono como o do Internacional.

Então, o jogo de hoje é decisivo para o futuro do Grêmio sob a batuta do Fábio Koff, que tem fama de laureado.

Mas há um fato que não tem explicação. É até natural e explicável que nesses primeiros jogos na Arena haja confusão para aquisição de ingressos, localização de boxes no estádio e outras complicações.

O que não se pode aceitar de forma alguma é que o gramado da Arena esteja péssimo para a prática do futebol.

O gramado é o equipamento mais importante de um estádio de futebol. E o agrônomo que cultivou o gramado da Arena é no mínimo um desastrado. Como é que ele, com tanto tempo que teve para plantar o gramado, apresenta-nos um areão daqueles?

Não tem explicação. É a pedra no sapato do Grêmio nesta decisão.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013



29 de janeiro de 2013 | N° 17327
FABRÍCIO CARPINEJAR

A paixão acontece

Se você recusou sua rotina, deixou de fazer aquilo que mais gostava em nome de alguém, torrou seus bens, abandonou os amigos e os prazeres mais fundamentais, isso não é amor, é paixão.

A paixão é uma fatalidade, o amor é uma escolha.

A paixão é egoísta, o amor é generoso.

A paixão é renúncia, o amor é recomeço.

A paixão arrebenta, o amor adapta.

A paixão é confinamento, o amor é abrigo.

Não há paixão pequena, paixão simbólica, paixão discreta: é grandiosa no início e escandalosa no final.

Não recomendo, muito menos desaconselho: é experiência para os fortes.

Nada do que viveu antes terá sentido, nada do que possa viver depois terá sentido. Conjugará interminavelmente o presente do indicativo.

Atingirá um extremo emocional perigoso: você passa a ser do outro em tempo integral. Conhecerá sua pior crise de nervos, seu mais fundo estresse emocional, seu mais absurdo esgotamento da memória, sua mais humilhante falência financeira.

Uma vez apaixonado, você rejuvenesce 10 anos em 10 horas. Mas, uma vez desapaixonado, você envelhece 10 anos em 10 horas.

A paixão ou é imensa, ou não é. Ela não pede desculpa, não negocia: equivale a uma dependência química em seu estado mais selvagem.

É o equivalente ao sequestro de uma vida. A própria vida. Você é o sequestrador e o refém ao mesmo tempo.

Não há desconto, adiamentos, pechincha. A paixão exige pagamento à vista, execução sumária.

Nunca vi nenhum apaixonado transferir compromisso para o dia seguinte, ele somente antecipa.

Não é que a paixão seja rápida, é devastadora, não sobra coisa alguma para continuar.

O apaixonado não abre negócios, mas fecha portas. Não areja a cabeça, não tem grandes ideias, não combate preconceitos, emburrece progressivamente, a ponto de só ter um número para ligar e um lugar para ir.

Ele não tem sangue-frio, não raciocina, não elabora planos, não arruma álibis.

A paixão é um crime malfeito, facilmente descoberto.

Os envolvidos desprezam o mundo, não se importam se estão sendo vistos, se beijam em público, se são casados, noivos ou recém-viúvos, se serão criticados pelos vizinhos e familiares.

O apaixonado joga tudo para o alto e não fica para segurar nada.

Ele não tem discernimento, não lê jornal, perde sua capacidade de decidir sobre a trajetória. Apresenta a superstição de um velho, a intuição de uma criança.

É um idiota sábio. Idiota porque não se defende da tristeza, sábio porque não se protege da alegria.

Não existe mais bom e ruim, certo e errado, esquerda e direita. Não tem sentido julgar. Não tem como se orgulhar do que foi realizado, muito menos se arrepender.

Você muda de personalidade, larga trabalho, descuida da família para se dedicar inteiramente a não pensar e somente sentir.

Não podemos nem dizer se a paixão ajuda ou atrapalha, ela acontece.

É uma tragédia feliz, uma sorte azarada.



29 de janeiro de 2013 | N° 17327
ARTIGOS - J.J. Camargo*

A pior dor

As grandes tragédias nos comovem porque nos transportam para dentro delas. E ficamos lá, durante dias, embalados pela discussão dos detalhes, pela tentativa infrutífera de reparar e, quando nos convencemos por exaustão de que nada mais é remediável, nos vemos a discutir os culpados, a criminosa falta de responsabilidade na emissão dos alvarás e as penas que deveriam receber. E ficamos indignados porque nada muda e, quando se repetir, sairemos outra vez atrás de novos culpados.

Mas nada disso passa nem perto dos sentimentos dos que perderam, porque a dor da perda é única e indescritível. A perda verdadeira e definitiva.

No máximo, podemos imaginar a partir de retalhos capturados nas declarações, o tamanho do sofrimento, mas não o sofrimento coletivo, porque este é sempre passageiro, mas o sofrimento individual, de cada pai e de cada mãe, que foram despertados com o relato de uma tragédia e descobriram petrificados que as luzes embaixo das portas continuavam acesas, porque seus filhos amados não retornaram da noitada.

Imaginem a saída para a rua depois de dezenas de telefonemas inúteis e a descoberta de que havia três possibilidades: mortos estendidos no piso de ginásio municipal, feridos hospitalizados em Santa Maria, feridos mais graves encaminhados para Porto Alegre.

Por onde começar a investigar, no meio de um tumulto, onde estariam a Bruna, o Rafael ou o Eduardo, se todas as pessoas gritavam e ninguém tinha uma informação confiável?

Quando a imprensa acessou o ginásio, reportou que corpos acomodados na lona preta pareciam intactos, visto que a maioria morreu asfixiada e não por queimaduras. Mas o que mais impressionou foi o relato de que os celulares seguiam tocando incansavelmente nos bolsos dos mortos.

E, quando um repórter tomou um deles, havia um registro a documentar todo o desespero, a perseverança e a incredulidade: “103 chamadas não atendidas”.

E no alto da tela o nome mais previsível: MÃE.

*MÉDICO


29 de janeiro de 2013 | N° 17327
TULIO MILMAN

O depois e o antes

Talvez seja uma antinotícia. Talvez alguns leitores desanimem na segunda linha e nem cheguem ao fim do texto. Paciência. O fato é que, na tragédia de Santa Maria, o Estado foi Estado. Os atores principais: governo federal, estadual e prefeitura. Me defendo de antemão. O elogio é baseado em fatos reais. Minutos depois do incêndio, a coordenação de crise definiu suas três linhas de ação.

1) Assistência aos feridos.

2) Assistência aos familiares e amigos.

3) Reconhecimento dos mortos.

A partir daí, a máquina andou. Em poucas horas, a estrutura estava montada. Na mesma área, um ginásio recebia os corpos. Ao lado, a transição para as funerárias. No espaço mais amplo, a central de informações e o velório coletivo.

A atenção e a presença da presidente Dilma Rousseff foram fundamentais. Quando saiu do Chile para Santa Maria, Dilma mandou um recado a sua equipe. “Façam funcionar”. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, assumiu pessoalmente a coordenação da sua área. Some-se a isso as presenças do governador Tarso Genro e do prefeito Cezar Schirmer. Pouco mais de 24 horas depois do incêndio, a Defesa Civil Nacional avisava: “Não está faltando nada, não precisamos de doações”. Remédios, leitos, luvas, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, policiais, psicólogos. Em quantidade suficiente e nos lugares certos.

As entrevistas iniciais foram cautelosas, sem omitir a verdade. Quem estuda gestão de crise sabe que é fundamental manter a opinião pública informada. Investir na frequência e intensidade da comunicação. Porque se as autoridades não falarem, alguém vai falar. Prefeito, governador, ministro, comandantes da Polícia e da Brigada estavam disponíveis para responder às questões da imprensa, muitas delas ainda sem resposta.

Na tarde posterior à tragédia, não houve registro de tumultos no ginásio municipal. Um por um, os parentes iam sendo chamados. Acompanhados por um psicólogo e por um policial, entravam no ginásio. Olhavam para o chão. E no chão estavam os corpos. Na saída, atrás de um tapume grafitado, amigos e familiares entendiam logo a reposta. E quase sempre a reposta certa era a pior.

O calor de mais de 30ºC dentro do ginásio exigiu uma logística especial. Dezenas de voluntários carregando caixas de papelão circulavam entre a multidão oferecendo copos de água. Havia biscoitos e sanduíches. Alguém pode, legitimamente, rebater: não fizeram mais que a obrigação. Fizeram sim. Mas é certo que, quando as tragédias já aconteceram, deveria ser sempre assim.

Esse texto, que começou com um elogio, termina com um desejo possível: que o poder público copie a si mesmo e tenha, no antes, a mesma eficiência que teve no depois. Leis claras e fiscalização que não poupe nem os amigos seria um bom começo.

Então, finalmente, não haveria mais o depois.


29 de janeiro de 2013 | N° 17327
MOISÉS MENDES

O dia seguinte dos que chegaram primeiro

Uma imagem atormenta o médico Pedro Copetti desde a madrugada de domingo. Copetti enxerga duas jovens dentro de uma ambulância do Samu. Uma está deitada na maca. A outra está sentada na cadeira usada pelos médicos, a cabeça pendendo para o lado, os braços estendidos.

– As duas estavam mortas.

Foi ali, naquele momento, quando, por impulso, ainda tentou reanimar a jovem sentada, que Copetti se deu conta de que não havia mais nada a ser feito. Frequentadores da boate e bombeiros retiravam do prédio e estendiam na calçada e no meio da rua corpos inertes. A tentativa de Copetti de salvar intoxicados pela fumaça havia se esgotado. Ontem, ao conversar com Zero Hora, ele relembrou os rostos das meninas e chorou por duas vezes.

Copetti, 32 anos, estava na primeira equipe de socorro do Samu a chegar ao local. Ele, o enfermeiro Fabiano Miranda, 34 anos, e o motorista Gilnei da Silva desembarcaram na Rua dos Andradas quando os próprios frequentadores, que conseguiram sair logo depois do incêndio, arrastavam jovens para a rua.

Um dia depois, os dois se reencontraram pela primeira vez, no posto do Samu, e abraçaram-se com força. Antes, o médico havia telefonado ao enfermeiro para dizer:

– Tu foste meu irmão naquela hora.

Foi pouco mais de uma hora na frente da boate. E foram muitas horas depois, quando saíram dali, no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo e dentro de um helicóptero com pacientes levados para Porto Alegre.

Na rua, Copetti e Miranda enfileiravam os corpos na calçada, tentando identificar prioridades. Chegaram a ficar diante de uma fileira de 40 pessoas inconscientes, que respiravam com dificuldade. Na primeira viagem ao Hospital de Caridade, Copetti levou quatro jovens, enquanto o enfermeiro ficava monitorando os socorridos.

Na segunda viagem, levou um queimado – outras ambulâncias já participavam do socorro. Quando retornou ao local para a terceira ida ao hospital, viu um grupo de rapazes acomodar uma moça na maca e outra na cadeira da ambulância. Eram as duas mortas.

Os corpos foram então retirados da van, para serem levados depois a caminhões da Brigada. Rareavam os sobreviventes. Começavam a chegar à rua os corpos dos que não resistiram. O médico lembra, enquanto exalta a bravura de rapazes que auxiliavam os bombeiros:

– Não havia mais como classificar quem estava pior ou melhor, mas quem estava morto e quem estava vivo.

Copetti convocou então os médicos Carlos Fernando Dornelles e Claudio Azevedo, que estavam em casa, e partiu com eles e Miranda para o Hospital de Caridade.

A missão era outra – ajudar a salvar os que se amontoavam em corredores, com entubação e ventilação mecânica. Às 11h, ele e o enfermeiro também foram os primeiros a levar de helicóptero uma moça e um rapaz para o Hospital de Pronto Socorro, de Porto Alegre. Miranda voltaria mais uma vez à Capital, com mais dois pacientes. No retorno a Santa Maria, ainda trabalhou até as 19h no Caridade.

O choro de Copetti, ontem à tarde, é parte do que, no jargão das desgraças, ainda se define como o momento em que a ficha começa a cair. Para um colega dele no Samu, o enfermeiro Felipe Cargnelutti Fontoura, 21 anos, que também participou da mobilização da madrugada de domingo, até ontem pela manhã “muita gente ainda estava no automático”.

– O problema vai ser hoje (segunda-feira) à tardinha.

Copetti e Miranda chegaram à calçada da boate pouco depois dos bombeiros. O primeiro caminhão da guarnição a estacionar na Rua dos Andradas saiu da unidade, no centro da cidade, às 3h18min. Estavam na viatura, com outros colegas, os sargentos Sergio Rogerio Chaves Gularte, 46 anos, e Dilmar Lopes, 45 anos, e o soldado Luciano Vargas Pontes, 29 anos. Todos experimentavam, no início da tarde de ontem, a mesma sensação: era como se continuassem ouvindo os celulares que tocavam sem parar, nos bolsos e nas bolsas das vítimas.

Lopes conta que desligou alguns aparelhos, mas nunca pensou em atender aos chamados. E se emociona ao contar que duas palavras apareciam com frequência, como identificação das chamadas, no visor:

– Às vezes, aparecia escrito: mãe. Outras vezes, pai.

Lopes enfrentou um drama pessoal. O filho, Matheus, 21 anos, estudante de Enfermagem, o avisou à noite que iria à boate. Quando o pedido de socorro aos bombeiros foi acionado, o militar saiu do quartel abalado:

– Quando iniciamos os resgates, eu pensei que, em algum momento, poderia estar tirando meu filho dali.

Ele ligava para o filho, mas a ligação caía na caixa postal. Lopes buscava corpos na boate, os colocava na calçada e voltava a tentar falar com o filho. Era como se o seu telefonema estivesse chamando todos os celulares dos mortos dentro da boate. E o filho não atendia.

Somente às 5h30min, quando os bombeiros já sabiam que não havia mais nenhuma pessoa viva no local, Matheus telefonou para dizer que desistira da festa, porque teria de enfrentar uma longa fila, e estava na casa de um amigo. O sargento Gularte, ao seu lado, lembra que, quando chegaram à Rua dos Andradas, ouviam os gritos de socorro que vinham de dentro da boate. Aos poucos, as vozes foram sumindo.

Os bombeiros entraram na Kiss com cilindros de oxigênio e lanternas com geradores. Encontraram obstáculos na porta. Os corpos caídos dificultavam o acesso.

– Da entrada até um pedaço adiante, ainda tinha gente respirando, junto com gente morta.

Depois dos primeiros resgates perto da porta, Gularte entrou na boate arrastando-se, levando junto uma mangueira de água. Cruzava sobre corpos e cacos de vidro de copos e garrafas.

– Perto e dentro dos banheiros havia pilhas de cadáveres. Era como se fosse um campo de concentração nazista.

Morreram ali porque tentaram sair e encontraram a porta fechada. Retornaram na direção dos banheiros, na tentativa de respirar pelas frestas de janelas abertas para a rua. O sargento Albino Benjamin Peripolli, 50 anos, que chegou à boate quando já amanhecia, lembra que o cenário no banheiro feminino era aterrador:

– Os corpos estavam amontoados. Eram tantas pessoas mortas que o monte de corpos chegava à altura das pias.

Com a inalação de fumaça, as mulheres desmaiavam e iam caindo sobre as outras. Já não havia mais o que fazer, nem quando rapazes sem camisa, que apareceram em vídeos vistos na internet, golpeavam as paredes, na tentativa de ventilar os banheiros ou criar pontos de fuga.

Os bombeiros não sabem dizer quantas pessoas foram tiradas com vida, por eles e pelos frequentadores que não se afastaram do local enquanto existia a chance de encontrar sobreviventes. Para o sargento Gularte, a imagem mais apavorante, que ontem ainda o atormentava, foi a dos caminhões-baú da Brigada Militar que carregavam os mortos:

– Enquanto estive ali, levaram um caminhão e meio com corpos. Infelizmente, iam amontoados. Mas salvamos muita gente.

Gularte trabalhou por cinco horas no resgate. Ontem, retornou ao quartel dos bombeiros, onde se reuniu com um grupo de colegas, a pedido de Zero Hora, para que contassem o que fizeram, o que viram e como enfrentavam o dia seguinte. O sargento arrastou para a rua meninas, vivas e mortas, da idade da filha, Yohana, de 19 anos, comerciária e estudante de Administração.

– Para quem estava lá, aquilo foi uma eternidade.

Para o sargento Bruno Tupinambá Francescato Severo, 49 anos, os celulares chamando toda a noite criaram uma situação absurda, que ele não esquecerá. O cenário fumacento, escuro e macabro da boate foi, durante horas, tomado pela música e por outros sons típicos dos aparelhos dos jovens. E não havia nada a fazer:

– Aquilo nos maltratou muito.