terça-feira, 5 de junho de 2007


Liberato Vieira da Cunha

Dos tons e dos silêncios

Há tantos anos convivo com os objetos que me cercam que desconfio que há muito me conhecem - talvez melhor do que eu próprio.

Estas duas cadeiras de alto espaldar, que um antiquário definiu de manuelinas, acompanham minha família desde o anteontem do tempo. Houve uma vez em que um exército de cupins atacou o apartamento e os de todos os vizinhos.

As perdas foram consideráveis, naufragaram portas e janelas, mas as cadeiras resistiram incólumes a todas as investidas.

O console da entrada já pertenceu à capela de uma mansão falecida. Não faço idéia de a quantos batizados, casamentos, encomendações assistiu contrito. Do que estou certo é que acompanhou muitas vidas e muitas partidas e tem a alma meio mística dos que muito viram e muito experimentaram.

As telas são recentes, mas há algumas de passadas idades de que gostaria de aprender a história. Calam-se entretanto, pois sua maneira de contar deve ser lida em seus tons, em suas cores, em suas profundidades e contrastes - e muito especialmente em seus silêncios.

Venho de uma época em que as salas de jantar eram dotadas de cristaleiras. Meus pais e meus avós reuniram muitas peças, mas nenhuma é tão bela quanto esta taça azul em que se lê Bons Annos.

Quem seria o aniversariante? Comemorou numa festa na qual de repente seus olhos se fixaram sonhadores numa loira senhorita de tranças, que a partir daquele instante foi sua paixão calada?
Mas quem mais ciência tem de meus segredos é o grande espelho do fundo. Este me acompanhou desde guri, para este nada é indecifrável.

Fico imaginando suas dimensões e profundezas sucessivas, as imagens superpostas de minhas outras eras e de minhas outras existências. Nada sei ocultar a ele.

E dele não sei ocultar-me, pois ilumina cada labirinto interior de que me construo e componho.
liberato.vieira@zerohora.com.br

Uma ótima terça-feira a todos nós com muito frio por aqui neste finzinho de outono.

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