sábado, 31 de julho de 2021


31 DE JULHO DE 2021
LYA LUFT

Do fundo das águas secretas

"O que são essas coisas que ficam se mexendo dentro da minha cabeça?", perguntou a criança ao seu pai, que riu e disse algo como "São teus pensamentos, são as palavras. Todo mundo tem isso, todo mundo pensa". (Foi o que a criança respondeu quando a mãe mais uma vez repetiu seu refrão "criança não pensa".)

Hoje muitas e muitas vezes me perguntam, a mim e a todos os que lidam com arte, de onde vêm as ideias, ou a chamada inspiração. Cada um vai dar uma resposta diferente, segundo seu jeito de ser, de viver, de trabalhar. A minha resposta, sincera, que no curso do tempo não mudou, tem sido: tudo vem de dentro de mim, impreciso mas real. Eu só elaboro, arrumo, enfeito (ou pioro). Pois "o vento sopra quando e onde quer": posso ficar períodos sem nenhuma boa ideia, e de repente tudo começar a fluir. Não sou dos disciplinados, modelos para jovens escritores, que escrevem todos os dias. Quando nada tenho a dizer, fico quieta, que é, aliás, o que mais aprecio.

A chamada inspiração, palavra tão polêmica e questionável, é o movimento que nos leva a produzir alguma coisa. No meu caso, repito, está tudo lá dentro, no fundo das águas da mente, ou da alma, aqui a semântica pouco importa. Na verdade, tudo o que vivo, vejo, escuto, sonho, tudo o que me dizem, o que leio, o que vem em entrelinhas e no silêncio, as palavras duras e as amorosas, as alegrias e as injustiças, vai-se depositando no meu inconsciente (ou como quer que o chamemos), como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Se ali mexo com um lápis (é só uma metáfora, gente...), esse depósito cria vida, se move, sobe à superfície. Em geral, é algo externo que de repente desperta o fundo das águas: um rosto, um telefonema, um movimento mínimo nas árvores, um sonho quando dormimos e do qual confusamente lembramos ao acordar, uma claridade na beira daquela nuvem. Move-se assim o material para a pintura, o romance, a música.

Assim são as ideias ou emoções que regem o que muitos artistas produzem: mas, embora vindo dessas águas escuras, não são necessariamente sombrias. Pois lá, junto com as pedras e perdas, estão depositados também os encantamentos que nos marcam para sempre. Não somos donos ou controladores dessa chamada inspiração: a palavra me incomoda, mas não tenho bom substituto. Por que me incomoda? Porque sugere algo caído do céu, uma luz que vem do alto, que nos faz sentar e trabalhar leves e alegrinhos. Às vezes, sim, escrevo com uma quase incontida alegria, se pudesse saía a dançar por cima dos telhados vizinhos (no meu caso, bastante improvável...). Outras vezes, me faz refletir, reescrever, desistir e deletar, andar pela casa, subir para o terraço, pensar em nunca mais escrever uma só palavra, depois voltar a este diminuto escritório e retomar a dura lida.

Assim emergem daquelas águas secretas os primeiros pensamentos sobre o Natal: a árvore que vou enfeitar depois do feriado, as comidas a encomendar pensando nos que vão chegar, o carinho que me aquece sempre que penso neles (e nos que estão distantes e não poderão vir). Emoções como vaga-lumes luminosos que alegram os dias nada fáceis para ninguém neste planeta - que anda bem esquisito.

Texto originalmente publicado em 12 de novembro de 2016

LYA LUFT

31 DE JULHO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Liberdade

Estava cruzando a sala, olhando a tela do celular, quando escutei o barulho vindo da sacada. Parecia uma folhagem sendo abalada por um vento forte, eu não deveria ter deixado os vidros tão abertos. Só que não havia vento. Ao me aproximar, vi que não eram folhas que estavam sendo agitadas. Eram asas. Asas batendo aflitas.

Minha sacada é fechada por vidros que abro em dias ensolarados, quando o inverno surpreende com uma temperatura mais camarada. Era um domingo assim, de céu tão azul que, antes mesmo das 8h, a paisagem já havia sido escancarada e os vidros encolhidos, de lado, permitindo a brisa entrar. Só que ele entrou também, o pássaro. Errou de trajeto, não desviou, veio parar ali, dentro da minha casa.

Um filhote ainda, nem havia nascido semana passada.

Encontrei-o num canto do chão, assustado, tentando escalar a parede, o desmiolado, com asas talvez machucadas. Abri a última lâmina que faltava (o fechamento da sacada é sanfonado). Agora sim, nada impedia o seu retorno ao voo interrompido por um apartamento no alto do caminho, o décimo andar bem no meio da sua rota, ele que devia ter escapado do ninho de uma árvore baixa. Vai, cara. Sai.

Sozinho, ele não conseguia. Tentei pegá-lo com a mão, mas ele gritou. Sério, ele não piou: GRITOU como se eu fosse a vilã gigante de um filme de terror que vinha para prendê-lo numa gaiola, a fim de enfeitar com alguma natureza o concreto dos meus dias. Estou aqui para salvá-lo, te acalma, que bicho estressado.

Trouxe então uma pá, quem sabe consigo apoiá-lo e então o despejo, como se fosse um lixo voador, mas ele era um pássaro azul royal, o mais nobre da redondeza, e não se prestou a pegar essa carona barata. Fugir numa pá, quem ela pensa que eu sou? Desisti da pá e voltei com uma escumadeira que também não era lá essas coisas, de plástico para não ferir o tadinho, mas ele era cheio de suscetibilidades e estava esgotado. Não facilitou a própria escapada. "Some daqui!", ele implorava com o olhar em fúria. Estou querendo te ajudar, seu mal-agradecido.

Deixei-o sozinho para refletir, também não funcionou. Voltei minutos depois, mais determinada do que nunca: agora você vai, criatura. Ajustei a escumadeira por baixo dele, como uma rampa de voo livre, e a muito custo ergui o irritadinho, impulsionei-o: salta! Nunca uma sacada aberta foi tão ampla, parecia uma tela de cinema.

Ele voou. Nem olhou pra trás. Fiquei eu ali, toda boba, comovida, como se tivesse me despedido de um filho que foi morar em outra cidade. Havia feito uma boa ação, me senti plena. Era uma manhã de domingo bem cedo e eu estava tão tomada de poesia na alma que pensei, pois é, a liberdade não tem preço, e comprei minha primeira passagem de avião em um ano e meio.

MARTHA MEDEIROS

31 DE JULHO DE 2021
CLAUDIA TAJES

Um dia no circo

Há quanto tempo você não vai ao circo? Sem contar a pandemia e o retiro tão compulsório quanto voluntário, eu nem lembrava da minha última vez. Foi, quem sabe, há uns 20 anos, época de crianças pequenas na família. Então a lona montada atrás do terreno do Bourbon Shopping, em Novo Hamburgo, apareceu no meu caminho. O resto é essa história, estrelada pelo elenco do Circo dos Dinossauros.

Logo na entrada, dois dinos que parecem saídos do Jurassic Park. Eles foram os últimos a se juntar à trupe, um investimento alto com a ideia de atrair o público mais fiel do picadeiro, as crianças. Com a chegada dos dinossauros, o circo mudou até de nome, e caiu na estrada prevendo longas temporadas de sucesso.

Então veio a pandemia.

Quando o mundo fechou, em março de 2020, eles estavam no Uruguai. Por conta dos muitos brasileiros no elenco, a turma decidiu que seria melhor esperar as coisas melhorarem no Brasil. Chegaram a Jaguarão e não conseguiram avançar. No primeiro mês, como todos nós, ainda estavam tranquilos. Vai passar, pensavam, daqui a pouco a vida volta ao normal.

No terceiro mês, a grande ficha caiu. Não ia passar tão cedo.

Vivendo nos trailers e motor-homes, sem renda alguma, cada artista deu seu jeito para sobreviver. Os caminhões estampados com as fotos dos números foram fazer fretes e mudanças pela região. Quem tinha carro virou motorista de Uber. Lwann, o palhaço, com dois filhos pequenos, atacou de eletricista, instalador de antenas, pintor e o que mais aparecesse. "Peguei depressão. O circo não é só sustento, é a nossa vida. Ver tudo desmontado, sem o público rindo, o picadeiro vazio, foi muito triste".

Em junho de 2020 conseguiram ir para Pelotas, para apresentações no formato de drive-in. No começo, quando as buzinas substituíram as palmas, eles tomaram um susto. Mas resistir é a regra número um desta arte que - oficialmente - é conhecida desde o Império Romano, lá por VI a.C.. Depois de passar também por Cidreira e Imbé, o Circo dos Dinossauros chegou a Porto Alegre em janeiro de 2021 para, eles acreditavam, uma temporada que botaria a casa em ordem.

Então veio a segunda onda do coronavírus.

Sem perspectivas, cada artista tomou um rumo diferente, Celina, dois filhos pequenos, casada com o sonoplasta e técnico de elétrica, decidiu ficar. No terreno onde o picadeiro não foi montado, teve a companhia do motorista do circo e sua família enquanto o marido vendia molas pelo país. Ela, que faz um número com tecidos e vai lá no alto da lona, deixando senhoras e senhores com frio na barriga, é hoje a artista que está há mais tempo na companhia, espécie de conselheira de todos. Viu o trapezista argentino Sebastian ir embora para Buenos Aires com Aylen, sua mulher e parceira de palco. O performático Dimitri, que abre o espetáculo com um número de tecido e maquiagens que chegam a levar um turno inteiro para serem concluídas, partiu para a casa da mãe, em São Paulo.

O que mais comoveu o pessoal durante esse longo período foi a solidariedade. Lwann conta: "Não tem tamanho a gratidão pelo público que ajudou a gente com doações, com alimentos. A gente pensou, e agora, como é que se compra comida pra filharada? E de uma hora pra outra começaram a chegar cestas básicas, incrível. O tempo que a gente ficou parado serviu para ver que as pessoas gostam muito do circo."

Alguns dos artistas conseguiram o auxílio emergencial, mas nem todos foram considerados aptos para receber o benefício. Celina conta que, sem um programa de apoio, inúmeros circos fecharam e muitos artistas, com suas famílias, se viram na rua, vários deles longe de seus países.

Enquanto não chega a hora de pegar a estrada, o Circo dos Dinossauros segue com as últimas apresentações em Novo Hamburgo, um laudo na entrada atestando o cumprimento dos protocolos. Porque "o palhaço quer passar alegria, não doença", diz Lwann.

E em tempos de pandemia, alegria é vida.

CLAUDIA TAJES

31 DE JULHO DE 2021
ENTREVISTA

"A excitação e o desejo da mulher estão na cabeça"

O que posso fazer para melhorar a minha vida sexual? Afinal, a libido diminui mesmo com o passar dos anos? Dúvidas como essas são comuns no consultório da especialista em sexualidade, que ensina como dar um up na relação a dois

Já pensou ter acesso irrestrito a um remédio gratuito que melhora, simultaneamente, a autoestima, o humor e ainda rejuvenesce? Pois esse é o efeito de uma vida sexual saudável e ativa, garante a psicóloga e sexóloga Lúcia Pesca.

Para marcar o Dia do Orgasmo, neste sábado, conversamos com a especialista em relacionamentos e sexualidade para responder às principais dúvidas femininas sobre o tema. Pensando nas dificuldades que muitas encontram em manter o desejo em alta com o passar dos anos, a terapeuta também compartilha dicas para as mulheres que não querem deixar o prazer sexual de lado na maturidade.

A libido diminui conforme ficamos mais velhas?

Sim, por vários fatores, principalmente fisiológicos, como os hormônios. É importante dizer que mulheres que tiveram uma vida sexual regular durante a vida - não frequente, mas regular - vão sentir menos o problema da falta de libido quando ficarem mais velhas. Vai diminuir? Sim, pelas questões físicas. Mas o hábito vai fazer com que, depois da menopausa, elas consigam ainda ter essa vontade.

Como manter o desejo em alta?

A mulher não foi acostumada, por educação e por hábito, a desfrutar das benesses da vida sexual. Na terapia sexual, a forma com que trabalhamos para que as mulheres consigam permanecer interessadas por sexo é basicamente se autoestimular. Depois, ouvir coisas que excitem. Os homens são mais visuais - então, para eles, os filmes pornô, por exemplo, são positivos. As mulheres precisam de coisas que elas ouçam. A leitura também: tudo que elas possam ler sobre erotismo, como poemas, artigos eróticos, cada uma no contexto de leitura do que gosta, acaba excitando mais. A mulher não precisa trabalhar somente o sexo em si. A excitação e o desejo dela estão na cabeça.

É normal não ter orgasmo, mas, mesmo assim, ter curtido a relação?

A resposta sexual da mulher é diferente do homem. Eles precisam ter desejo para entrar em uma relação sexual. As mulheres, não. Por meio da (psiquiatra canadense) Rosemary Basson, uma pesquisa mostrou que muitas mulheres relatavam (situações do tipo): "Não estava a fim, mas entrei na relação porque gosto dele, porque fazia tempo que a gente não transava, porque me lembrei da última vez que transei". A partir daí, elas vão se excitar. Depois que ela "pega no tranco", como digo, vem o desejo. Ela primeiro vai se excitar para depois ter desejo, e aí pode chegar ou não ao orgasmo, que não é tão importante quanto o prazer que sentiu durante a relação.

Como propor ao parceiro algo diferente na hora a dois?

Se esse casal não teve o hábito da comunicação íntima, torna-se mais difícil falar sobre isso quando ficam mais velhos juntos. É importante trabalhar esse constrangimento e não ficar pensando: "Ah, ele me conhece há tantos anos, deve saber do que gosto". Nem você sabe do que gosta, porque o corpo mudou, a cabeça mudou. A mulher tem que descobrir do que gosta sexualmente e orientar o homem.

Que dúvida é mais comum entre pacientes com mais de 60 anos?

Seja ela casada ou solteira, as dúvidas são, basicamente, sobre como aperfeiçoar a vida sexual. O que posso mudar, o que posso fazer de diferente para me sentir mais solta, mais livre durante o ato sexual? É importante saber que a terapia sexual não serve somente para resolver problemas ou disfunções. Também serve para aperfeiçoar, tornar diferente ou melhor (a vida sexual), e meu consultório tem cada vez mais esse tipo de demanda. Muitas vezes, as mulheres dizem: "Sexo tem que ser natural, não tem que ser aprendido". Tem que ser aprendido, sim. Mulheres inteligentes estão procurando a terapia sexual para essas dicas.

Como manter uma vida sexual ativa na maturidade?

O básico é a comunicação. No momento em que o casal conversa, ela consegue orientar o parceiro e, com isso, não tem tantos conflitos durante o sexo. Outra coisa é tentar diminuir o nível da expectativa. Além disso, (é importante) o autoconhecimento. Se a mulher não se ligou em conhecer suas zonas erógenas até então, a liberdade sexual desse momento vai ajudá-la. Mulheres solteiras que estão com novos parceiros podem ter um pouco mais de constrangimento, e aí eu diria: cuidado com os preconceitos em relação às suas transformações de corpo - e de cabeça também. Primeiro trate isso para depois conquistar alguém.


31 DE JULHO DE 2021
LEANDRO KARNAL

A TENTAÇÃO DO SENTIDO

As coisas possuem um sentido ou ocorrem de forma aleatória? O universo tem alguma lógica? O ritmo dos fatos seria imaginado por uma ordem superior (religiosa, filosófica ou científica) ou estamos imersos no absurdo? Qual o sentido da pandemia de coronavírus? Por que alguém morre jovem? Qual o sentido da vida?

As respostas, se existem, são complexas. A palavra grega para sentido (ennoia) não se confunde, como em português, com a percepção das coisas (sentido da visão ou olfato, por exemplo). Estamos falando de significado dos fatos, das coisas e das pessoas. Temos uma constante busca de sentido, quase uma tentação. "Isso aconteceu para que eu aprendesse uma lição"; "escapei do acidente porque não era minha hora"; "ter filhos deu sentido a minha vida". Quase sempre a ideia é confundida com um lugar (telos, em grego) e uma jornada para tal lugar. Também aparece como uma pessoa (filho) ou uma causa (a educação) e aqui se confunde com afeto intenso. Por gostar muito do meu filho ou da minha profissão, suponho que seja o sentido quando é preenchimento do tempo com prazer. Não é disso que estamos falando. A vida pode ter sentido com dor ou sem.

As religiões são fruto da tentação máxima de sentido. Quero ser parte de um drama cósmico que me considera importante. Por exemplo: anjos e demônios, Deus e o diabo disputam minha alma. Eu fui criado no momento máximo do sexto dia. Tudo o que ocorre foi pensado para meu bem, inclusive coisas difíceis. Sou ator de uma peça escrita pelo Ser Supremo e cabe a mim fazer as falas, ações e marcações de cena corretas para ganhar a salvação. A ideia pode ser de um Deus pessoal ou diluído em questões mais técnicas como a dita lei do retorno: sua ação gera uma reação, o que você dá você recebe, tudo o que vai acaba voltando. O binômio causa-efeito pode ser de fonte religiosa ou concebido como uma espécie de ciência universal. Se você não entendeu, não se preocupe, basta usar a palavra "quântico" que tudo se resolve de uns anos para cá.

Dadas por um Deus ou determinadas por uma ciência difusa, as ideias descritas antes tentam fazer um sentido (moral, inclusive) para nossa existência. As religiões, quase sempre, criam uma ideia de início, meio e fim e me colocam dentro deste processo. Tudo é conhecido e possui lógica. Em Lucas 12,7, por exemplo, sabemos que os fios do cabelo da nossa cabeça estão contados e, no mesmo evangelista, somos informados que nenhum deles cairá sem que Deus permita (21,18).

A tentação de sentido atinge ateus, inclusive. Marx criou, em 1848, um manifesto que fala de toda a história humana (que foi calcada em luta de classes). Mais tarde, desenvolveu a ideia de que marchamos, inevitavelmente, para uma revolução que introduzirá o socialismo e, logo em seguida, o comunismo. O autor eliminou Deus, introduziu um materialismo forte, e criou uma teleologia: um sentido de história. Como dizia o crítico Edmund Wilson (Rumo à Estação Finlândia), a solidez do castelo marxista não impediu que as brumas da metafísica entrassem sob a porta. A metafísica, no caso, é uma leitura de transcendência, de algo além da física, de abstrações entre poesia e tom profético.

Já declarei em público como vejo semelhanças entre religiosos em geral e marxistas. Ambos possuem livro sagrado, ideia de fraternidade, dogmas, ambos gostam da ideia de martírio, podem ser violentos ao exercer o poder, amam tribunais, são capazes de sacrifícios e, no extremo, até de coisas bonitas. No fundo, são sistemas que decorrem da ânsia absoluta pela vontade de sentido. Espelham, ambos, um desejo ancestral que explica sua longevidade que não depende de fracassos do passado. Sempre tive bons diálogos com marxistas e com devotos religiosos e sempre temi a ambos no poder, seja em teocracias ou em ditaduras do proletariado. Seus títeres, escolhidos por Deus ou pela revolução (czares ou Stalins), são complicados.

E se não houver uma alma a salvar, um reino de Deus a instaurar ou um povo a libertar da opressão capitalista? Se as causas forem artificiais e datadas pelo meu tédio, ressentimento, revolta ou desejo denegado? E se o sentido fosse uma construção mental ou social para evitar o desespero e o vazio? Consegue imaginar? Abrir mão de tais ideias parece abrir em nós uma certa angústia.

Temos percebido ou inventado sentidos há muito tempo. Parece que o sentido nos acalma. Mais: gostamos de sentidos justos. Queremos que os bons recebam alguma recompensa e os maus sejam punidos de algum jeito, neste ou em outro mundo. Com céu/inferno, ciclo de reencarnações, revoluções socialistas ou liberais, ideia de carma/darma, lei do retorno e tantas outras elaborações, aquieta-se nossa consciência e o mundo entra em um eixo. Há um destino, caminhamos para ele, inexoravelmente. Ufa! O alívio revela nossa carência. Quem estaria enganado: o que reforça ou o que esvazia a fixação em sentido? Esta pergunta tem sentido? Independentemente da resposta, é preciso buscá-la com esperança.

LEANDRO KARNAL

31 DE JULHO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

PARRESIA, DIZER A VERDADE

A palavra parresia junta pan, tudo ou todo, e rhesis, fala (de onde vem retórica), e significa falar tudo, dizer o que deve ser dito, uma forma necessária da verdade; pode ser traduzida como autenticidade, a fala sincera, mas tem contexto político: onde, como e quando pode-se e deve-se dizer tudo. Na Atenas democrática, parresia formava trio de conceitos fundamentais com as palavras isonomia (igualdade diante de uma norma que equaliza) e isegoria (direito de falar); com a parresia, a democracia e a liberdade comprometem-se com a franqueza de verdades valiosas. Eis o maior desafio da história e da vida em sociedade. Estamos preparados?

Em outubro e novembro de 1983, o filósofo historiador Michel Foucault (1926-1984) apresentou na Universidade da Califórnia em Berkeley seis conferências sobre parresia, publicadas em 2013, na revista Prometeus, da Universidade Federal de Sergipe. São algumas das páginas mais vigorosas jamais publicadas sobre verdade e sociedade. Assim define Foucault: "A parresia é uma atividade verbal na qual um falante expressa sua relação pessoal com a verdade e arrisca sua vida porque reconhece o ato de dizer a verdade como um dever para melhorar ou ajudar outras pessoas (assim como a si mesmo)". Eis a palavra e a verdade como fármacos visando ao bem comum.

A política e o poder costumam levar a uma série de cacoetes mentirosos, de ocultação, hipocrisia, demagogia, segredos, manipulações, violações e subordinações ilegítimas. É contra esses vícios e violências que se ergue o compromisso da parresia, para que os falantes na esfera pública usem a liberdade, o espaço e a ocasião de falar para manifestar apenas verdades. Não se trata da verdade proclamada por poderosos, mas do oposto, da necessidade destes ouvirem o que devem, sem adulação ou ocultamento. A aplicação do direito e a busca da justiça vivem dessa necessidade que nem sempre a sociedade consegue garantir e poucos encaram, pois machucar as orelhas dos tiranos, como fez Antígona, não promete confortos.

O primeiro autor grego a usar e explorar os sentidos da palavra parresia foi Eurípides (480-406 a.C.). Na tragédia As Fenícias, que trata da luta dos filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, pelo trono de Tebas, a rainha Jocasta (Jo.) recebe o filho exilado (Pol.) e pergunta-lhe como é viver no exílio, para ouvir: "O pior é não dispor de toda a fala". Segue-se diálogo rápido e tenso: Jo.: "Servil é não dizer o que se pensa". Pol.: "Convém tolerar ignorância de reis". Jo.: "Aflige ser néscio com os néscios". Pol.: "Por lucro serve-se contra a índole". (trad. Jaa Torrano). 

Das penas do exílio, a pior é não poder falar com sinceridade. É, pois, admirável e irônico que um imigrante haitiano tenha dito a verdade, em Brasília, em março de 2020: "Seu governo acabou!". E desde então foi a sociedade que armou a luta necessária, como antídoto a vírus e governo nocivos. E agora trata-se de reverberar o haitiano e dizer a verdade trágica: é um genocídio cruel e hediondo. E precisamos defender a vida, e já é tarde. Vai pra ágora, com verdade e vigor, que o futuro nos aguarda.

FRANCISCO MARSHALL

31 DE JULHO DE 2021
COM A PALAVRA

"TEMOS QUE INVESTIR NA MENTE. VEREMOS MENOS VIOLÊNCIA, MENOS CIRURGIA E LOUCURA."

MARIA HOMEM

Psicanalista, 52 anos Professora da Faap (SP), autora de "Lupa da Alma" e "Coisa de Menina?", entre outros livros, era a companheira de Contardo Calligaris

Ela não deixa a psicanálise no divã. Apesar de um jeito mais introvertido, quase tímido, Maria Homem não se recolhe ao consultório e difunde a prática de Freud em uma série de vídeos na internet, nos quais compartilha reflexões sobre a sociedade, o masculino, o feminino e as relações humanas. Nesta entrevista, uma das principais psicanalistas do país fala sobre a política brasileira, a vida durante a pandemia, a solidão do isolamento, as perdas pela doença e as novas e velhas formas de amar. Também admite a falta que sente de Contardo Calligaris, seu parceiro de vida e profissão, morto pelo câncer em março deste ano e ao lado de quem, diz ela, seria muito mais interessante acompanhar a CPI da Covid pela televisão.

A PANDEMIA NOS MOSTROU QUE O SER HUMANO SE ADAPTA A CONDIÇÕES TRISTES DE VIDA, A MILHARES DE MORTES DIÁRIAS, A LIDERANÇAS QUE SUBESTIMAM UMA CRISE SANITÁRIA. COMO SAIREMOS DESSE TRAUMA?

Será que houve um trauma para todos? A gente precisaria entrar em um acordo para assumir que fomos atravessados pela seta do trágico, que está por trás do trauma. Muitas vezes, a gente tem estratégias para recusar o evento traumático, e é isso que estamos vendo no Brasil. Estamos vivendo um acontecimento traumático, que tem a magnitude de ser transformador, aquele evento que você atravessa e não é mais o mesmo que era antes. Como país, nação, deveríamos aceitar que há um evento com essa magnitude e que é atravessado por morte, luto, pelo não saber, por medo, ameaça, discussão, debate, radicalização das diferenças. Ele tem várias camadas de sofrimento, é multitraumático. 

Só que uma parte das pessoas fica tão atarantada que pode dizer: "Não está acontecendo nada e não é esse o problema". E a outra parte faz um trabalho duplo, de lidar com o vírus, com a morte, com a corrupção, e ainda com o outro que recusa. É muito trabalhoso lidar com o caos e com as mentes que recusam o caos. Como atravessaremos o trauma? Só tem uma saída, que é humanizar, elaborar, discutir, compartilhar a dor, as mudanças, o luto, o ficar junto em casa e ver isso interferir no trabalho, no casamento, no corpo. A gente deve elaborar, fazer cultura, conversar, contar como foi. Isso é arte: quando você tem coragem de compartilhar sua experiência.

CHEGAMOS AO PONTO DE TER LIDERANÇAS NEGACIONISTAS E DEMONSTRANDO POUCA AFEIÇÃO DIANTE DAS VIDAS PERDIDAS, INCLUSIVE NO BRASIL. É SÓ UM PERÍODO PASSAGEIRO DA HUMANIDADE?

Estamos em uma mudança cultural e civilizacional profunda. Tem a ver com uma mudança de paradigma patriarcal que envolve muita coisa: uma lógica fálica, hierárquica, de privilégio, uma lógica piramidal, do "sangue azul", de nobreza, na qual o rei é o representante de Deus na Terra. Se faz um outro conceito de humano que não é o conceito onde todos são iguais perante lei. Claro que nós somos únicos, singulares, ninguém sente do mesmo jeito, mas todos temos o direito de sentir, se expressar e agir do nosso jeito. Só que tem uma resistência a isso, que se traduz em movimento racista, patriarcal, machista, em imposição de signos de força, como a arma, a gangue, a milícia, a tribo, o clã, a família, o pastor, o padre, o deus. 

Há várias camadas envoltas no bolsonarismo, no trumpismo, na supremacia branca, no Putin, no Erdogan, nos mentores desse chamado tradicionalismo. É uma corrente que visa destruir tudo o que está aí para, em um futuro - não agora, mas em um futuro - erguer algo que tem muito da nostalgia de uma instância pré-moderna. Mas há uma grande transformação que é irreversível. A gente não vai mais conseguir achar legítimo colocar o corpo de um negro em um tronco e chicotear. A gente não vai mais achar natural falar para uma mulher: "Te cala, não vota e não tenha propriedade, siga teu pai e depois teu marido". Pode haver a destruição que houver, a idade das trevas que quiser: não vai funcionar. Podem até destruir a Terra, mas não vamos voltar para esse passado.

O ISOLAMENTO SOCIAL FOI UM DOS MAIORES DESAFIOS DA PANDEMIA. POR QUE FICAR SOZINHO É AMEDRONTADOR?

A gente tem medo da gente mesmo. É isso o que mais traz angústia. Toca-nos uma consciência da própria condição humana, que Freud chamou de desamparo estrutural. Somos muito frágeis. A vida tem duas forças profundas: o impulso à vida e a finitude. Cada vida é limitada e frágil, porque pode terminar, falecer, e ela não faz o trabalho sozinha, precisa de outros. Você é sempre pequeno, e mesmo que crie estrutura míticas transcendentais que venham te amparar - Deus, por exemplo - ainda assim você vai voltar à terra. Ao pó retornará. Vamos fazer o quê, então? Ligação com o outro. Há uma angústia nesse elo: o que ele vai achar de mim, se falei bobagem, enfim, todas as angústias do outro. É a própria condição humana que é problemática. Depois, há a conexão consigo mesmo, todas as dúvidas e sofrimentos do próprio ser. Então tudo é problemático.

PASSAR MAIS TEMPO SOZINHO PODERIA SER UM CONVITE À INTERIORIZAÇÃO, MAS PARECE QUE AS PESSOAS FAZEM O CONTRÁRIO, USANDO, POR EXEMPLO, AS REDES SOCIAIS. COMO SE VIVER SÓ FOSSE POSSÍVEL QUANDO COMPARTILHADO.

É como se a gente perdesse uma oportunidade. A gente vive perdendo oportunidades: de se humanizar, de se transformar em pessoas um pouco mais interessantes, mais cultivadas, mais corajosas. Mas a gente faz tudo ao contrário: tem um medo tão profundo, uma covardia de base. Então, em vez de vermos a verdade, a gente foge dela, e fica cada vez mais falso, mais ficcional. A gente está perdendo oportunidades. O livro que lancei no ano passado, Lupa da Alma, tem essa tônica. É estruturado em sete capítulos: vai do eu até a morte, passando pelos ciclos individuais, a relação com o outro, a parceria afetiva e sexual, depois os conflitos entre pais e filhos, a relação com amigos, trabalho, cidade, o global e a morte. Tudo seria uma oportunidade para sabermos um pouco mais como poderíamos viver juntos de maneira menos suicida. Estamos vivendo no paradigma do medo, do ataque e do contra-ataque. A gente está se armando até os dentes. A gente tem medo do outro, não sabe sentar, conversar e negociar.

A COVID-19 CHEGA SEM AVISAR E DE REPENTE TIRA A PESSOA DE SEUS ENTES QUERIDOS. MAS VOCÊ VIVEU UMA PERDA DIFERENTE, UMA PERDA ANUNCIADA, LENTA, QUE É A MORTE PELO CÂNCER. COMO FOI PERDER O CONTARDO ENQUANTO ELE AINDA ESTAVA VIVO?

Assim como você falou: é uma morte anunciada. Na verdade, tive duas experiências profundas de perda. Uma foi uma morte abrupta, repentina, quando eu era jovem, que foi a do meu pai. Foi muito difícil, é um tipo de trauma. É muito denso, você muito jovem e uma figura tão importante morrer de maneira abrupta... O que fazer com esse buraco? Li o livro da Rosa Montero sobre a Marie Curie, chamado A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver (2019). A Marie Curie também teve essa perda: o companheiro foi atropelado. É a seta do trágico. E agora tem essa segunda experiência, igualmente intensa, mas diversa, porque foi tendo um saber cada vez mais claro... Como você disse, a perda é gradual. Imagina, o Contardo, uma potência, um homem fora da curva, com uma capacidade de pensar, produzir, falar, elaborar, de ir e vir, e de repente vai havendo uma perda gradual disso. Foram meses, um período relativamente longo, mas nos últimos seis meses... É difícil ver um corpo humano, para além de ser ele, o homem que você ama, é difícil ver a vida se esvaindo, se despotencializando. É difícil.

CONTARDO ERA O PSICANALISTA MAIS FAMOSO DO BRASIL. AGORA, MARIA HOMEM ESTÁ SÓ, GANHANDO ESPAÇO E NOTORIEDADE COMO PSICANALISTA. COMO É SE DESVINCULAR DA FIGURA DELE?

Acho que sempre existiu uma Maria Homem desvinculada de Contardo Calligaris. Sempre fiz o meu próprio caminho e sempre fui muito discreta em relação ao laço com o Contardo. Ele até brincava com isso: "Por que você não quer me assumir, tem vergonha de mim?". Aí eu dizia: "Não é isso, você é muito famoso e eu trabalho na mesma área, então não faz sentido. Tenho o meu orgulho, o meu nome, o meu caminho. Não quero me aproveitar do seu nome". Lógico, as pessoas do meio sabiam há anos. Mas o grande público só soube que a gente era "pareado" quando ele morreu e eu fiz um texto para elaborar a perda. Muita gente disse: "Nossa, não sabia que vocês eram um casal". Não sabia porque eu não queria que soubesse. Sou discreta. Então discordo da pergunta, deu para perceber?

MAS A PERGUNTA ESTÁ RESPONDIDA.

Agora, como é seguir seu próprio trabalho sem uma grande interlocução... É um vazio imenso, uma falta que vai ficar sempre aí. Para mim e para muita gente, tanto que a perda do Contardo foi uma comoção nacional. Muita gente vai sempre sentir falta dele, porque ele era aquela potência reflexiva, analítica, de estilo, a forma de colocar as coisas, as tiradas... Ele tinha uma capacidade analítica ímpar, uma cultura imensa. Como escreveu o Walter Salles (cineasta) na Folha de S. Paulo, citando o pensador do Mali Amadou Bâ: "Quando alguns homens morrem, é como uma biblioteca em chamas". Me faz falta essa biblioteca toda, essa interlocução privilegiadíssima. Seria mais interessante acompanhar a CPI da Covid com ele. Um leitor da realidade que lia com você o livro do mundo. Isso vai me fazer falta.

VOCÊ FAZ VÍDEOS FALANDO SOBRE AMOR E RELACIONAMENTOS. HÁ UMA QUESTÃO QUE ATRAVESSA GERAÇÕES: COMO AMAR SEM PERDER A LIBERDADE. AS RELAÇÕES ABERTAS SE TORNARAM UMA POSSIBILIDADE. VOCÊ ACREDITA NELAS?

Só acredito em uma relação aberta. Ela precisa ser sexualmente poligâmica para ser aberta? Não sei. Precisa ser necessariamente monogâmica para ser romântica? Não sei. Mas aberta no sentido de uma abertura de cada um para o mundo. Cada subjetividade não se realiza em si mesma com um único objeto, isso é uma ficção. É mais interessante uma relação de amor, de corpo, quando é você inteiro ao lado dessa pessoa, quando você está à vontade, quando você se exerce. Se sua fantasia, eroticamente falando, é compartilhar com várias pessoas, seu corpo, o corpo do outro, assistir coisas, variar objeto para estar vivo sexualmente... Não sei, cada um vai ter sua resposta. Se a monogamia é complicada - e ela não é tão frequente quanto a gente imagina - então a monogamia não funcionou. A relação não monogâmica funciona? Como? É o que estamos vivendo. Cada um vai fazer do seu jeito.

ALGUNS PSICÓLOGOS E PSICANALISTAS FALAM QUE OS ROMANCES DA FICÇÃO SÃO RESPONSÁVEIS POR FANTASIAR NOSSA IDEIA DE AMOR: AS HISTÓRIAS TÊM ALTOS E BAIXOS E TERMINAM COM O CASAL JUNTO. NA VIDA REAL, É DEPOIS DO THE END QUE MUITAS RELAÇÕES ACABAM.

A literatura e qualquer forma de narrativa. O cinema também faz isso. A escolha dos elos relacionais é muito interessante, porque está ligada à liberdade, só que não é o "eu" que escolhe propriamente. Tem o inconsciente, atravessado por identificações que você não controla. Você casa com um e vive com outro, porque ele não era aquilo que você achou. Você desenhou uma parceria e depois diz: "Nossa, ele me enganou". Mas você se enganou também. A gente cria, fantasia, e faz isso juntos.

SIM, MAS A LITERATURA TRAZ A IDEIA DE QUE O AMOR É INTENSO, SÓ QUE UMA RELAÇÃO LONGA NÃO É SEMPRE INTENSA, ELA ENTRA EM UMA ZONA DE CONFORTO QUE NÃO É ABORDADA NA FICÇÃO.

Entendo esse argumento, mas não sei se compraria esse discurso. Se você tem uma conexão profunda com você mesmo, não tem marasmo. O humano é inquieto por natureza. Se você achou trincheiras básicas para se esconder da angústia - e normalmente as trincheiras são o trabalho e a família - e entrou em um ciclo de marasmo, ok se esse acordo funciona para você, ótimo. O detalhe é que, às vezes, você acha que a estabilidade e a segurança funcionam, e depois se surpreende com você mesmo ao ver que não está feliz. Isso que te angustia, que não te preenche, é a inquietude do ser humano. Nunca é sem graça se a gente tem conexão com a gente mesmo. Sempre terá algo novo para contar, para descobrir. O outro é um parceiro nesse percurso que é sempre individual. Por isso eu disse que qualquer relação é inevitavelmente aberta. Você está sempre aberto para você mesmo, para o mundo, e o outro vai acompanhando. A vida não é sempre a mesma, a gente muda. Como é envelhecer, se aproximar da morte, ter mais experiência e mais dinheiro do que tinha aos 20 anos? Como é perder a saúde? Como é olhar essa ampulheta da vida? Vamos juntos? A vida não para. Então nunca me vi nesse marasmo.

TEM SE FALADO BASTANTE EM RELAÇÕES TÓXICAS. HÁ MUITA GENTE NESSE TIPO DE RELACIONAMENTO EM FUNÇÃO DE UMA BUSCA POR INTENSIDADE. COMO ALCANÇAR A INTENSIDADE FUGINDO DA TOXICIDADE?

A incompletude é um conceito importante. A gente pode se tranquilizar e assumir a nossa própria incompletude. O que seria uma completude, fazer uma liga sujeito-objeto, eu e o outro? Mesmo quando você está com fome, quer comer aquilo e come, isso vai durar pouco. A insatisfação é vida, ela move. A falta move. Do que estamos falando? A dialética do desejo e da falta. Para você desejar, tem que ter algo de uma não completude, e que é interessante. Agora, o que você espera que o outro te dê? Uma completude plena, total? Isso é imaginário. Não existe outro que te complete o tempo todo. A gente talvez esteja errando na própria ideia de completude e incompletude, vazio e preenchimento. Será que não estamos esperando muito do outro? É a própria modernidade. Quando ela nos deu o direito de escolher e construir a nossa vida, fazer o que a gente quer, a alquimia que vai te levar ao nirvana profundo, ao ápice do desejo... É falsa essa narrativa. Não existe parceiro que te complete o tempo todo de tudo o que você quer. O que não quer dizer que você não possa ter uma parceria incrível.

VOCÊ É MUITO APEGADA À LITERATURA DESDE CEDO. OUVIR TANTOS DILEMAS DE PACIENTES É UMA FORMA DE SUPRIR A NECESSIDADE DE HISTÓRIAS?

A psicanálise e a literatura têm tanta coisa em comum, tanto no receber quanto no produzir. Uma coisa é a história, e outra é a própria arte da palavra, ouvir a palavra. É uma conexão com o mundo, com o outro, com a descoberta. Quando você escuta alguém, é uma história, mas é uma vida, uma postura subjetiva. Tanto que, para a clínica, muito mais importante do que a história é a posição do sujeito dentro da história. O que ele elabora, o que ele atravessa. O que nosso herói, nossa heroína, está descobrindo nesse caminho? Sem dúvida, a psicanálise e a literatura fazem uma grande parceria.

COMO SERIA SE A SOCIEDADE INVESTISSE TANTO EM TERAPIA E ANÁLISE QUANTO INVESTE EM ACADEMIA?

Seria incrível. Fica a dica para o SUS! Os planos de saúde já estão fazendo esse cálculo. Você vai economizar, veremos menos cirurgia, menos violência, menos loucura. Temos que, urgentemente, investir na mente. Está se entendendo que é mais barato. E bem mais interessante, né? Sou suspeita: adoro corpo, adoro movimento, mas pensar, elaborar, simbolizar... A gente é esse ser que sente, pensa, fala, se expressa. Por que não dar espaço para isso ser ampliado e não só silenciado, recalcado? Isso é uma violência que gera violência, destruição, ignorância, sofrimento, dor de barriga, todos os tipos de dores.

TERMINAMOS AQUI? Na dor? No momento, acho que é um bom fim.

KARINE DALLA VALLE

31 DE JULHO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

MISTURA DE VACINAS

PESQUISA INDICA QUE MESCLAR IMUNIZANTES CONTRA A COVID-19 PODE SER SEGURO E EFICAZ

Tomar as duas doses da mesma vacina tem sido a recomendação em todos os países. Recebeu a primeira dose da vacina da Oxford-AstraZeneca, a segunda deve ser a mesma. O mesmo vale para a da Pfizer e para a CoronaVac.

Um grupo de pesquisadores na Espanha decidiu avaliar a possibilidade de imunizar a população com a combinação de vacinas de fabricantes diferentes.

No início de abril deste ano, o Spanish CombivacS Trial reuniu 663 participantes que já haviam recebido a primeira dose da vacina Oxford-AstraZeneca.

Essa vacina é preparada a partir de um adenovírus que infecta chimpanzés, no qual foram introduzidas as instruções para que as células do organismo produzam uma proteína da cápsula do coronavírus, que estimulará o sistema imunológico da pessoa imunizada.

Entre os participantes, 431 foram randomizados (sorteados ao acaso) para receber, como segunda dose, a vacina fabricada pela Pfizer-BioNTech - baseada na tecnologia do RNA mensageiro -, pelo menos oito semanas depois da dose da AstraZeneca. Um grupo de 232 pessoas que não receberam a segunda dose serviu de controle.

A vacina da Pfizer provocou um estímulo intenso no sistema imunológico. Enquanto no grupo controle (vacinado apenas com a primeira dose da AstraZeneca) os níveis de anticorpos contra o coronavírus permaneceram constantes, nos que receberam a dose de reforço da Pfizer houve produção de anticorpos em níveis mais altos.

Nos testes laboratoriais, esses anticorpos demonstraram atividade neutralizante, isto é, foram capazes de reconhecer e inativar o Sars-CoV-2.

Os autores também compararam a produção de anticorpos daqueles imunizados com a combinação das duas vacinas (AstraZeneca-Pfizer), com os que receberam as duas doses da mesma vacina (AstraZeneca-AstraZeneca). A produção de anticorpos demonstrou mais eficácia nos participantes que combinaram AstraZeneca com Pfizer.

Não foi feita a comparação na produção de anticorpos, nos casos de administração de duas doses com a vacina da Pfizer.

A adição de duas preparações obtidas por tecnologias diferentes não provocou efeitos indesejáveis mais graves do que aqueles esperados para a administração de cada vacina.

A técnica de "misturar" vacinas preparadas por tecnologias diversas já foi empregada com bons resultados contra outras doenças. É o caso da imunização contra o vírus Ebola.

O uso da combinação de duas vacinas teria a seguinte vantagem teórica: evitaria o inconveniente da administração de duas doses da vacina AstraZeneca e de outras preparadas com a mesma tecnologia: a possibilidade de a resposta imunológica contra o adenovírus usado como vetor reduzir a eficácia da segunda dose. No caso do emprego de duas doses da vacina Pfizer, o risco de efeitos indesejáveis é maior na segunda dose, como revelou um estudo semelhante que está sendo conduzido no Reino Unido.

DRAUZIO VARELLA

31 DE JULHO DE 2021
J.J. CAMARGO

SÓ SER FELIZ, PORQUE MAIS NÃO QUIS

"Educação é aquilo que fica depois que você esquece o que a escola ensinou" Albert Einstein*

Quem abraçar a estimulante responsabilidade de transferir conhecimento aos mais jovens não pode esquecer que eles estão vivendo um momento complicado, premidos a tomar decisões e a fazer escolhas, mergulhados numa enxurrada de informações, mas ainda sem os filtros da sabedoria, esses que demoram a ser reconhecidos, no longo processo de adequação do que aprendemos com o caráter que possuímos. E, se não bastasse, tal turbilhão ainda está submetido ao tempo, esse senhor debochado, que aparentemente se diverte com a confusão que fazemos com nossas promessas, esperanças, certezas e desilusões.

Tendo feito do magistério uma das tarefas mais prazerosas da minha vida, posso assegurar que muito do alento para continuar quando era mais fácil desistir brotou do brilho daqueles olhos atentos, inquietos e ávidos de tudo.

Poder passar adiante as maiores lições aprendidas em mais de 45 anos de alta complexidade e perceber que as mensagens ficavam reverberando nos futuros encontros renovava cada vez e sempre o entusiasmo de ensinar essa maravilhosa profissão que, como o amor e a morte, não tolera o meio termo.

Mais desafiador é ser o veículo ético do conhecimento que cresce em ritmo acelerado, mas com a limitação das ciências biológicas que não seguem as trilhas seguras dos modelos matemáticos, porque se alimentam de recursos abstratos, como intuição, experiência e bom senso. Flavio Kanter comparou a atividade médica na busca do diagnóstico mais correto à tarefa dos detetives que, servindo-se do método indutivo/dedutivo, juntam as diferentes pistas para construir ou enfraquecer hipóteses.

Nem a chamada medicina baseada em evidências, considerada a maneira mais confiável de diagnosticar as doenças e estabelecer tratamentos com menor margem de erro, está livre de uma variável que liquida com todas as certezas: enquanto as doenças se repetem monotonamente, os doentes se revelam únicos na maneira original de adoecer. Por isso, muito cedo se aprende que ser médico é a arte de conviver com a incerteza sem transparecer insegurança. Afinal, os pacientes, assustados pelo medo da morte, confiam nas nossas certezas. E tantas vezes essa confiança é tudo e só o que podemos oferecer, na expectativa de que eles sublimem as dúvidas que não conseguimos disfarçar.

Ensinar estudantes de Medicina a transitar por esse terreno inseguro e movediço é um exercício de sabedoria e delicadeza que encanta a quem recebe e gratifica a quem oferece.

Com o passar dos anos fui percebendo que o interesse nas minhas aulas se concentrava no segmento final, quando sistematicamente discuto situações objetivas da relação médico-paciente, exaltando a importância de que sejamos tecnicamente os mais qualificados que consigamos, sem jamais esquecer que entre dois profissionais igualmente treinados sempre prevalecerá o que seja mais afetivo. Nesta altura, assumo que minha alegria de viver - e foi tamanha - se alimentou da sensação de que muitos acreditaram.

Sem perceber o tempo passar, porque quanto mais prazerosa mais veloz a vida é, já ouço os arautos da burocracia a tocar as suas trombetas anunciando o fim do meu encanto de ensinar. Foi uma dádiva na minha vida. Claro que sabia que não ia durar para sempre, mas sempre quis que durasse. E vivi como se fosse.

Quando se aproxima o fantasma que tanto atormentou meus últimos tempos, o da aposentadoria compulsória, por coincidência ou generosidade, (não tive coragem de perguntar) fui agraciado com o convite para ser paraninfo da AD-2021, da minha muito amada UFCSPA.

Foi minha quinta experiência, que me emocionou como se fosse a primeira. Talvez pela certeza de que será a última.

Posso não ter ensinado ninguém a ser feliz, mas de tanto tentar, consegui ser.

*A internet diz que essa frase é de Einstein. Não confio em quase nada do que a internet afirma, mas gostaria que fosse, porque daria todo o sentido a esta crônica.

J.J. CAMARGO

31 DE JULHO DE 2021
DAVID COIMBRA

Vamos nos divertir

Sempre digo que a dor do outro não deve ser subestimada. Não há como estabelecer níveis de sofrimento, a não ser que sejam do seu próprio sofrimento. Um obstáculo minúsculo para alguns é intransponível para outros.

Então, se a pessoa diz que está sofrendo, ela deve ser respeitada e, se possível, ajudada. Mas o sofrimento não é, por si, mérito, até porque todos sofremos. Como está na oração: todos choramos neste vale de lágrimas. Tudo depende da forma como você lida com o sofrimento, portanto. Alguns o sublimam, e o produto do sofrimento é a sabedoria. Alguns o vencem, mas se tornam ressentidos. Outros simplesmente não suportam.

Esta semana, a atleta Simone Biles disse que estava sofrendo e que, por isso, abandonaria a Olimpíada. Tomaria essa decisão "em nome da sua saúde mental". Um abalo nos jogos - logo ela, que chegou a Tóquio para ser a maior estrela da competição.

Ouvi e li de tudo sobre a atitude de Biles, das críticas mais acerbadas aos elogios mais melosos. Não concordei com quase nada. Biles tem de ser compreendida; não enaltecida nem crucificada. Ela errou porque esperou chegar a Tóquio para avisar que não queria ir a Tóquio. Outra menina, que poderia ter ido em seu lugar, deve ter ficado bem chateada, lá nos Estados Unidos. Talvez Biles tenha tirado de uma colega a realização da sua vida. Talvez ela a tenha feito sofrer. Mas, uma vez que ela foi ao Japão, acertou ao anunciar que não aguentava mais. Se continuasse disputando as provas nessas condições, comprometeria sua equipe.

Não foi isso, porém, o que mais me interessou neste caso. O que mais me interessou foi Biles ter contado que não se sentia alegre participando das provas. Repare, leitor: dias atrás, escrevi um pequeno texto acerca de Simone Biles para ser publicado na Editoria de Esportes. O texto abria assim:

"Eu conheci Simone Biles. Quer dizer: não assim, de ficarmos parceiros, de tomarmos chopes cremosos juntos. Eu apenas a entrevistei durante os Jogos Olímpicos de 2016, no Rio. Fiquei diante dela, na zona mista da ginástica olímpica, e me impressionei: ela é bem pequeninha! Tem 1m42cm de altura, imagine. O topo de sua cabeça ficava à altura do meu peito. Ela é também uma simpatia, conversa sorrindo e parece muito satisfeita com o que faz".

Releia essa última frase: "Ela é também uma simpatia, conversa sorrindo e parece muito satisfeita com o que faz".

Ou seja: quando Biles estava feliz com o que fazia, venceu; quando ficou triste, perdeu. Exatamente igual ao que acontece a qualquer um de nós. Não é só nas barras paralelas assimétricas que você precisa estar satisfeito para ter sucesso, também precisa ao varrer uma esquina, como gari, ou a serrar um osso humano, como cirurgião, ou a impetrar um habeas corpus, como advogado, ou a ensinar a regra de três, como professor. Mais até: você tem de estar contente ao tomar o café da manhã com sua mulher, ao dar um beijo de boa-noite no seu filho e ao fazer um churrasco com os amigos no fim de semana. Cada hora do dia tem de ter sua alegria. Precisamos encontrar a alegria, leitor!

Você e Simone Biles não estão mais felizes com o que fazem? Pensem na hora certa de parar, e parem sem medo. A vida só vale a pena ser vivida se for por diversão.

DAVID COIMBRA

31 DE JULHO DE 2021
FLÁVIO TAVARES

CAFÉ COM FRIO

O título talvez leve a pensar que sugiro tomar mais café pelo frio, quando - de fato - busco lembrar como o clima gelado afetou nossos cafezais, do sudeste de Minas ao Paraná, no Sul, e, mais ainda, em São Paulo. Antes, foi a seca, agora a geada, num desastre que, em escala global, foi produzido pela ação ou inércia de todos nós.

A crise climática gera todo o queixume de agora, em que (aqui no Sul) nem as grossas roupas de lã, umas sobre as outras, disfarçam o frio. As mudanças climáticas, porém, são obra humana e já estamos em crise profunda. No atual verão do Hemisfério Norte, a Sibéria (região de gelados invernos) vive um calor sufocante, jamais visto por lá, onde, antes, a temperatura nunca ultrapassava 25 graus.

Na Europa Central e na China, chuvas arrasam cidades num extemporâneo dilúvio. A urbanização sem limites é a causa principal, especialmente na China, onde a edificação impermeabiliza o antigo solo agrícola e as minas de carvão infestam o ar.

Aqui, a geada faz os cafeicultores aplicarem nitrato de potássio nos cafezais para reduzir o ponto de congelamento da seiva. Isto aumenta a resistência das plantas, mas há, também, a malvada contrapartida: o nitrato de potássio pode acarretar problemas à saúde humana, como irritar a pele e mucosas ou até os olhos. E não apenas durante a aplicação em si, mas, igualmente, pode deixar resíduos nos grãos que, logo, passam ao café que bebemos.

Como se não bastasse o horror da covid-19, até o café nos leva àquele "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Tudo por conta do erro grotesco de continuarmos a destruir a natureza, como se o planeta fosse um estorvo.

Agora, forma-se geada também sobre a política, secando a seiva que devia alimentar os governantes. O senador Ciro Nogueira, do PP do Piauí, que Bolsonaro escolheu como novo ministro-chefe da Casa Civil, responde na Justiça a cinco inquéritos por suborno e propinas milionárias. No dia em que assumiu o estratégico posto de coordenador do governo, a Receita Federal o citou como suspeito de sonegar milhões no Imposto de Renda.

Na posse, Bolsonaro disse que entregava "a alma do governo" a Ciro Nogueira, que dirige o PP, o partido mais implicado nas fraudes da Lava-Jato.

O novo dono da "alma do governo" é íntimo perene do poder. Na era Lula da Silva e Dilma Rousseff, foi fanático defensor de ambos e Lula foi seu semideus.

Com geada, neve ou seca, tudo serve ao novo dono da "alma do governo". Até café frio.

FLÁVIO TAVARES

31 DE JULHO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

RETROCESSO INACEITÁVEL

Boa parte da sociedade brasileira, exausta e anestesiada pelos efeitos nefastos da radicalização política, permanece indiferente a um debate que nem sequer deveria ter começado. Ameaças veladas sobre realizar ou não eleições no ano que vem são inaceitáveis, sejam quais forem seu teor, suas motivações e seus protagonistas. Uma sociedade democrática não pode calar quando esse burburinho autoritário ganha formas mais nítidas.

Não há margem para derivações, delírios e desvios: cabe à Justiça Eleitoral o papel de organizar, liderar e fiscalizar a realização dos pleitos regulares, sempre à luz da lei e da ética. Não há interesse pessoal ou partidário que se sobreponha à periodicidade e constância estabelecidas pelo calendário. Eleições são realizadas de dois em dois anos. Não se trata aqui de rechaçar o debate sobre questões que até podem ter a sua legitimidade, como a proposta do chamado voto auditável e uma transparência ainda maior para a averiguação da vontade popular, o que neste momento é analisado no Congresso.

Sempre é possível evoluir, o que a própria adoção da urna eletrônica comprova. Desde que a tecnologia começou a ser utilizada no Brasil, em 1996, não há qualquer indicativo minimamente consistente de fraude. O desejo autêntico de aperfeiçoar o sistema não pode ser intencionalmente confundido, porém, com subversão da ordem democrática, conquistada pelos brasileiros ao longo das últimas décadas.

É nítido, até mesmo para os mais desatentos, que a real motivação dessa retórica descabida é, neste momento, a criação de um clima que justifique eventuais contestações aos resultados nas urnas no próximo ano. Não há, nas falas desprovidas de lógica e de verdadeiro patriotismo, qualquer real intenção de colaborar com o processo de aprendizado e evolução da jovem democracia brasileira. Existe, isto sim, apego ao poder e impulsos golpistas incompatíveis com a liberdade e com a normalidade institucional de um país que já sofreu demais com a supressão de liberdades individuais e coletivas.

Se nem a pandemia impediu que os brasileiros fossem ordeiramente às urnas em 2020, não são bravatas e falsas assombrações que desviarão o país de seu compromisso com a Constituição e com o bem-estar de seus cidadãos. Cabe às instituições e aos líderes verdadeiramente comprometidos com o espírito republicano, com serenidade mas firmeza, reafirmar que o país, como é regra, terá eleições livres e justas em 2022, e o desejo popular, expresso nos votos, será soberano. 


31 DE JULHO DE 2021
MARCELO RECH

O Houdini do Planalto

Sou um apreciador das entrevistas com o ministro da Saúde, o cardiologista Marcelo Queiroga, mas não exatamente pela objetividade das respostas. Acompanho as falas do ministro para admirar a refinada arte do contorcionismo para preservar suas convicções e reputação, enquanto se esforça para não arranhar as obsessões de seu chefe no combate ao coronavírus.

Em geral, as entrevistas exploram contradições entre as posturas de Queiroga e Bolsonaro, como o desdém presidencial a ser vacinado, usar máscara e manter distanciamento. Nas respostas, sempre em tom educado e cordial, outra abissal diferença em relação ao presidente, o ministro se mostra um Houdini - o mestre da escapologia - diante das armadilhas à frente. À frequente pergunta sobre a determinação do presidente para que o ministério estude a desobrigação de máscaras para quem já tenha sido vacinado ou contaminado, o ministro se desvencilha: "Estamos estudando". Já se vão lá quase dois meses da orientação presidencial e, diante da provável nova onda de contágios pela variante Delta, o ministério, felizmente, segue estudando, estudando, estudando.

Xiitas à esquerda e à direita não gostam do ministro. Entre os que têm repulsa por qualquer um que sirva a Bolsonaro a menos de 1,5 metro de distância, Queiroga é visto como colaboracionista de um governo perverso. Entre os radicais de direita, o ministro apanha pela moderação e pela forma diplomática com que dribla as doidices negacionistas. Na realidade, goste-se ou não do ministro, ao se manter fiel à ciência e ao esforço de obter o máximo de vacinas no mínimo de tempo, Queiroga tem sido decisivo para salvar vidas de brasileiros e para repor alguma racionalidade aos estoques rarefeitos do Planalto.

Em um dos lances mais humilhantes da crise, por exemplo, ouviu-se o agora ex-chefe da Casa Civil, o general da reserva Luís Eduardo Ramos, confessar que tomou vacina escondido - naturalmente para não ferir as suscetibilidades de um chefe de Estado que até hoje não pôs os pés na Fiocruz, uma exemplar instituição federal que já produziu quase 80 milhões de doses contra a covid. Enquanto isso, Queiroga valorizou o popular e simpático Zé Gotinha, amaldiçoado por bolsonaristas que o associavam a governos do PT, e faz questão de, sempre que possível, vacinar ele mesmo colegas de ministério em cerimônias públicas.

A favor do ministro, conta também o contraste com seu antecessor, um neófito que fazia previsões mirabolantes e se orgulhava de cumprir ordens desconexas de Bolsonaro. Aos poucos, Queiroga vem desativando as bombas-relógio deixadas no ministério, demitindo dirigentes suspeitos e, com discrição, recuperando parte do esforço desperdiçado pelo governo para a vacinação em massa. Nas atuais circunstâncias, já é uma mágica e tanto.

MARCELO RECH

31 DE JULHO DE 2021
J.R.GUZZO

O retrato acabado da CPI da Covid

Se o Brasil tivesse instituições que valessem uma nota de 2 reais e políticos com a qualidade profissional de um flanelinha, não teria acontecido uma aberração tão miserável como essa CPI da Covid. Tendo acontecido, não poderia ter nomeado um presidente investigado por corrupção alguns anos atrás pela Polícia Federal - sua própria mulher e três irmãos foram para a cadeia sob a acusação de meterem a mão em verbas da saúde. 

Também não teria um relator como esse que está aí, com nove processos penais no lombo e a fama pública de ser um dos políticos mais enrolados do Brasil diante das leis criminais. Não poderia, igualmente, ter como vice-presidente um indivíduo que não entendeu até agora o que é uma investigação parlamentar séria, que já deu provas repetidas de histeria e trata como criminosos e inimigos da pátria todos os depoentes que fazem parte da sua listinha negra pessoal.

A CPI do Senado não investiga nada - existe unicamente para a mídia e a oposição conduzirem, há três meses, um show contra o governo. Centenas de depoimentos, diligências, perícias e tudo o mais foram se amontoando uns sobre os outros sem deixar claro, com um mínimo de competência no trabalho investigatório, o que houve realmente de errado, quem errou, quando, onde, no que e como. Não há um único inquérito penal que possa levar à condenação de alguém, mesmo porque não há nenhuma prova decente a respeito de nada ou de alguém até agora. Milhões de reais de dinheiro público são queimados em troca de literalmente coisa nenhuma.

O vice-presidente da CPI, que desde o começo do espetáculo quis disputar a boca de cena com os outros dois, parece ter encontrado de algum tempo para cá o papel que mais lhe satisfaz; talvez, sem saber, esteja tendo a grande oportunidade de colocar para fora, à vista de todos, o que realmente sempre quis ser e até agora esteve escondido nas dobras da sua estrutura psicológica. Está se revelando, talvez mais do que os outros, um policialzinho frustrado e subitamente portador de uma farda desses - que sempre sonhou com um revólver na cinta e uma carteirinha escrita "Polícia", para intimidar as pessoas e se comportar como o pequeno ditador de quarteirão que tanta gente conhece e lamenta.

Nada deixa o senador mais feliz do que chamar os jornalistas para ameaçar alguém de prisão - como no caso de um empresário acusado por ele de "evadir-se", para não comparecer a um interrogatório na delegacia de polícia que está armada no Senado Federal. É o seu jeito de ser "autoridade" - através da repressão, como sonha boa parte da esquerda neste país. É o seu jeito de aparecer no noticiário. É um retrato acabado dessa CPI.

Conteúdo distribuído por Gazeta do Povo Vozes

J.R. GUZZO