sexta-feira, 30 de abril de 2021


A vitória dos feios

Sócrates era um homem feio. Há um busto dele num museu italiano. Seus traços definitivamente não são gregos. Tem a cara redonda, a cabeça calva e um nariz batatudo, traços que não aparecem em outras estátuas que reproduzem personagens da época.

Sua feiura era mítica em Atenas. Diziam que, um dia, ela lhe teria salvo a vida. É que Sócrates era também soldado, com participação bem-sucedida em diversas batalhas. Ele era hoplita, soldado da infantaria pesada do exército ateniense. Portava um grande escudo, uma espada e uma lança. Era acostumado à dura luta corpo a corpo e admirado por sua coragem.

Pois uma vez ele se viu em um difícil combate contra os espartanos na Guerra do Peloponeso. Os espartanos, você sabe, viviam para a guerra. Eles treinavam desde a primeira infância para lutar, eram soldados profissionais, não exerciam outra atividade, como os gregos de outras cidades.

Você viu o bom filme 300, sobre a Batalha das Termópilas? Numa cena, os 300 guerreiros do rei Leônidas, de Esparta, se encontram com alguns milhares de homens de uma cidade aliada. O comandante desses guerreiros olha para o pequeno grupo liderado por Leônidas e se espanta:

- Eu trouxe mais soldados do que você!

Leônidas não responde diretamente. Apenas aponta para um dos soldados da cidade aliada, perguntando a seguir:

- Qual é a sua profissão?

- Ceramista, senhor - responde ele.

Leônidas aponta para outro:

- E a sua?

- Ferreiro.

Outro ainda:

- E a sua:

- Oleiro, senhor.

Depois, vira-se para seus próprios soldados e pergunta:

- Espartanos! Qual é a sua profissão.

E eles, erguendo as lanças, gritam como se fossem um só homem:

- Arru! Arru! Arru!

Leônidas, então, olha para o general aliado e conclui:

- Viu, velho amigo? Eu trouxe mais soldados do que você.

Os espartanos eram assim. O negócio deles era a guerra. Eram feitos para o conflito e a luta. Por isso, naquela batalha da Guerra do Peloponeso, eles foram aos poucos batendo os atenienses, até que sobrou um único hoplita na resistência: Sócrates. Estavam prontos para massacrá-lo, quando ele tirou o elmo e os encarou, rosnando, furioso. Ao verem a carantonha de Sócrates, provavelmente tornada ainda mais feia pela raiva e pelo esforço do combate, os bravos espartanos recuaram e fugiram para a segurança de seu acampamento.

Uma imperfeição, digamos assim, de Sócrates, salvou sua vida. O relato pode ser exagerado, pode ter sido um único espartano que fugiu ao ver sua aparência assustadora, mas a verdade é que o que era considerado defeito foi seu grande trunfo. Assim como ora ocorre conosco, todos os que temos ou tivemos alguma doença importante na vida. Chamavam-nos de "comórbidos", esses que "treinam" em academias. Era o que diziam de nós: "Aí vai um comórbido". E agora nos vacinaremos antes deles. Você está vivo, venceu uma doença. E, por isso, evitará outra. É assim a vida, meu amigo: o que era um mal anteontem pode ser um bem amanhã.

DAVID COIMBRA 


30 DE ABRIL DE 2021
CINEMA

A força gaúcha na missão heroica de "Tenet", premiado com o Oscar

Rodrigo Dorsch atua na empresa britânica responsável pelos efeitos visuais

Um dos filmes mais ambiciosos de 2020, Tenet recebeu o Oscar de melhores efeitos visuais no último domingo. Na única estatueta que o longa de Christopher Nolan conquistou, o porto-alegrense Rodrigo Dorsch foi um dos operários. Radicado em Londres, é supervisor de composição da empresa britânica DNEG, que trabalhou com os efeitos visuais do filme.

- Foi uma emoção enorme. É um reconhecimento do nosso trabalho em escala global - destaca Dorsch, 44 anos.

Ele também integrou o time de Interestelar (2014), de Nolan, que recebeu o Oscar de melhores efeitos visuais em 2015. Em Tenet, Dorsch foi responsável pela parte que se chama composição, que seria a finalização do trabalho. Seu departamento é o último a mexer nas filmagens realizadas antes de elas irem para uma edição final:

- A responsabilidade é muito grande porque é a imagem final. Ao mesmo tempo, a recompensa também é gigantesca.

Sobre a premiação do Oscar, Dorsch ressalta que a categoria costuma ser bastante concorrida, especialmente pela evolução da tecnologia ao longo dos anos. Porém, observa que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (organizadora da premiação) tende a valorizar projetos em que os efeitos sejam essenciais para contar a história do filme e que misturam técnicas - algo bastante comum nos filmes de Nolan:

- É um diretor que gosta do realismo, por mais absurdas que algumas ideias dele possam parecer. Mesmo esses mundos diferentes que ele cria têm sempre esse pé no mundo real.

Além de Tenet e Interestelar, outro filme de Nolan em que Dorsch também trabalhou foi Dunkirk. No ano passado, esteve no badalado Snyder Cut - versão original do cineasta Zack Snyder para o filme Liga da Justiça (2017). Também constam em seu currículo filmes como Thor: O Mundo Sombrio (2013), Velozes e Furiosos 6 (2013), Godzilla (2014), Star Trek: Sem Fronteiras (2016), entre outros.

Trajetória

Filho do lendário músico gaúcho Beto Roncaferro, Dorsch é formado em Publicidade e Propaganda pela UFRGS. Começou trabalhando com design gráfico e sempre se identificou mais com o aspecto visual. Logo após se formar, partiu para os Estados Unidos, onde viveu em Los Angeles na maior parte do tempo.

Nos EUA, conheceu algumas pessoas que trabalhavam com efeitos especiais, foi introduzido a alguns programas da área e voltou a estudar: foi se especializar na área na New York University (NYU).

Começou com formatos menores, dedicando-se a comerciais. Em seguida, foi para a televisão, trabalhando em séries como Californication, CSI: Investigação Criminal e True Blood. Como sempre teve paixão por cinema, chegou a hora em que ele queria lidar com produções que iriam para a telona.

Mandou seus trabalhos para a DNEG, mas sem grandes expectativas. Após uma entrevista por telefone, Dorsch recebeu uma oferta e foi para Londres, onde vive há mais de nove anos. E também tem seu lado cineasta: chegou a dirigir um curta-metragem de ficção científica chamado Silent Night (2010). Com os conhecimentos que adquiriu na NYU, fez todo o filme em tela verde. Uma experiência que gostaria de repetir:

- Tenho algumas ideias, mas preciso ter o tempo. É uma atividade que eu gostaria de seguir fazendo, mesmo que por lazer.

WILLIAM MANSQUE


30 DE ABRIL DE 2021
OPINIÃO DA RBS

ATENTADO CONTRA A JUSTIÇA NO RS

O ataque cibernético que tirou do ar o sistema de informática do Tribunal de Justiça do Estado na quarta-feira é mais uma alerta sobre a relevância da segurança digital. É notório que esse tipo de atentado, ainda mais contra estruturas robustas e providas de mecanismos de proteção, requer conhecimento e recursos significativos. Por isso, é meritório e indispensável o esforço para chegar aos responsáveis, mesmo que, muitas vezes, esse caminho seja difícil.

Não são apenas as instituições que sofrem com invasões e golpes virtuais. O cidadão comum, ainda mais vulnerável, é alvo constante, tanto de arapucas ilegais quanto de ações camufladas, protagonizadas por grandes players mundiais da tecnologia, que se apropriam de informações disponibilizadas online pelos usuários para práticas invasivas e abusivas, um dos pilares do chamado "capitalismo de vigilância". Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados, já em vigor no Brasil, é um avanço, embora ainda insuficiente para proteger os indivíduos e a sociedade. O megavazamento de informações de mais de 200 milhões de brasileiros que veio a público em janeiro e até agora está à espera de respostas por parte das autoridades é um exemplo dessa fragilidade e da complexidade para identificar os responsáveis e, em um segundo passo, puni-los.

Um dos grandes pensadores da atualidade, o israelense Yuval Harari, autor de Sapiens e de Homo Deus, alertou, recentemente, para os perigos de um atentado que provoque um apagão digital no planeta. Não é alarmismo. Historiador, filósofo e escritor, Harari compreende que, cada vez mais, a sociedade depende dos computadores e de seus sistemas, sejam eles simples programas que executam tarefas objetivas ou algoritmos sofisticados que se aproximam, cada vez mais, da capacidade decisória dos humanos. Hoje, hospitais, aviões, bancos, instituições de ensino e mesmo prédios residenciais estão conectados a sistemas de abrangência planetária e, por isso, com considerável grau de vulnerabilidade.

A tecnologia, desde que democratizada e utilizada em conformidade com os valores mais nobres e perenes da humanidade, é fator de desenvolvimento e bem-estar. É urgente, porém, garantir que essas ferramentas sejam absolutamente seguras, pelo risco dos efeitos potenciais de ataques como o praticado contra o Tribunal de Justiça do RS. Tirar a Justiça do ar, com implicações inclusive para a segurança pública, é um atentado contra a democracia e, por isso, precisa de uma meticulosa investigação para desvendar as motivações e de uma resposta enérgica e rápida das instituições para desencorajar novos atos do gênero.


30 DE ABRIL DE 2021
EDUARDO BUENO

Dreamer

A música derrubou as muralhas de Jericó. A música captou o som das estrelas e das esferas nas sinfonias de Beethoven e sonorizou a ascensão da humanidade do caos aos cosmos, com Strauss na abertura de 2001. A música definiu a alma do Brasil, desde o lundu e do samba até a fossa e a bossa que embalou o mundo no balanço da garota de Ipanema. A música - feroz como rock, ancestral feito o blues, profunda igual ao soul, rural qual o country - fundiu-se no delta do Mississippi, ganhou vida na eletricidade de Chicago e, como na parábola bíblica, pôs abaixo o muro da vergonha, as paredes da caretice, o tapume do conformismo.

Pedrinho Sirotsky seguiu essa trilha sonora com fervor religioso e viés profético, igual ao povo que abriu o mar da intolerância para chegar à terra prometida das canções de redenção. E o sonho de Pedro, tão logo ele percebeu que fazer música não era o seu melhor (apesar das raízes afinadas da família), passou a divulgar música, amplificar a música, propagar a música no tempo e no espaço, como se fosse mesmo altofalante. E isso ele tratou de fazer nas ondas do rádio, nos raios catódicos da TV, nos bailes e festas que embalaram os sábados à noite. Meninos, eu vi, eu ouvi, eu dancei.

Mas, de repente, o sonho acabou. E, mesmo que tivesse dormido no sleeping bag, Pedro teve que trocar a velha calça azul e desbotada pelo terno e o nó no pescoço e seguir pela estrada afora do desafinado mundo corporativo. Passados 40 anos desse amor interrompido, Pedrinho Sirotsky está de volta, outra vez atrás da cor do som, com olhos e ouvidos bem abertos para as sonoridades do mundo, seguindo the sound track que ecoa pelo globo. E faz essa viagem na pele e na alma de Mr. Dreamer, que rastreia o planeta apostando no sonho que já foi - e continua sendo - dele. Pois sonho que se sonha junto...

Essa é a trilha de Mr. Dreamer, um docudrama bem dirigido por Flávia Moraes, bem roteirizado por Marcélo Ferla e bem estrelado por Pedrinho, no papel do fazedor de sonhos que desembarca em Dublin e, qual um flautista de Hamelin às avessas, sai atrás de jovens músicos locais para desvendar-lhes os sonhos, os sons e os acordes, para que eles acordem e vivam a plenitude de seu universo musical. Mr. Dreamer é o cara que quer registrar o som das estrelas nascentes, desde o Gênesis até as supernovas, qual um Supertramp - nem que seja para anunciar que, se seguirmos entoando esse canto torto feito faca, as trombetas do Apocalipse vão mesmo troar.

O episódio - que se espera seja o primeiro de uma série - estreou ontem no Now e logo estará no Globoplay. Tomara que em breve dê para escutar os sons de Nova York, Moscou, Jerusalém e do Porto de Elis, claro. E que eu possa continuar à vontade na hora de elogiar meus amigos - mesmo que um deles faça as vezes de patrão.

EDUARDO BUENO

quinta-feira, 29 de abril de 2021


29 DE ABRIL DE 2021
DAVID COIMBRA

A recordação mais importante que um filho tem de um pai

Se você é amigo da Kelly Matos e vai fazer aniversário, prepare-se! A Kelly pode transformar o seu aniversário num kerb. Numa oktoberfest. No meu caso, aprilfest. Porque a Kelly, se estiver inspirada, é capaz de fazer do seu aniversário um evento de dias, às vezes de semanas.

Comigo ela aprontou o seguinte: pediu vídeos para os meus amigos falando de mim. Há duas semanas ela me manda três ou quatro desses vídeos por dia. Até o dia do meu aniversário, que foi agora, 28, recebi uns 60 vídeos! E vou dizer para você: me fizeram muito bem. Estou, como você sabe, me recuperando de uma cirurgia e dos episódios pós-cirurgia. Além disso, estou arrematando o tratamento com sessões de radioterapia comandadas pelo doutor Fernando Obst, da PUC. Minha intenção é, depois disso tudo, ficar como aquele carango seminovo que você cobiça na revenda, com meus 100 mil cá emes rodados e as lembranças de algumas velhas chapeações e pinturas, mas pronto para levar você até o fim do Brasil, se for preciso.

Essa é a ideia.

Mas, antes, preciso enfrentar algumas contingências. Pois os meus amigos, com suas manifestações de carinho, fizeram com que essas contingências se abrandassem e que me reerguesse, que me sentisse melhor e que olhasse para aquele local inalcançável, o futuro, com muito mais otimismo.

Uma das mensagens que me tocou a Kelly não mandou para mim. Ela deixou para divulgar no rádio, durante o Timeline, da Gaúcha. Foi do meu filho Bernardo, de 13 anos. Ele contou sobre um dia que considera especial: quando o levei para assistir a um jogo dos Red Sox no histórico Fenway Park, um dos mais antigos estádios das Américas. Naquela noite, nós comemos o tradicional cachorro-quente do beisebol americano, sentamos nas arquibancadas, vimos o jogo sem entender nada do que estava acontecendo e nos divertimos muito.

Meu filho recordou:

- Foi a primeira vez que eu e meu pai saímos só nós dois em Boston. Foi um dia ótimo para mim, que mostrou como nós somos os melhores amigos do mundo.

Aquela noite também foi ótima para mim, mas, até agora, não era especial. Tornou-se, obviamente.

Isso, essa lembrança de um momento juntos, é sempre o que marca as pessoas. Um filho talvez pudesse recordar de algum sábio conselho que seu pai deu, ou de algo que o pai fez que o orgulhou. Não. Ele se lembra do jogo em que foram juntos. Não recorda de nada de extraordinário que vocês fizeram, apenas lembra que estavam lado a lado.

É o que temos de fazer com as pessoas que a gente ama. Não precisamos fazer nada grandioso, não precisamos pronunciar sentenças inteligentes ou declamar sonetos de Camões. Bastar estarmos juntos. É o que mais quero de presente de aniversário: estar junto dos meus amados amigos.

DAVID COIMBRA

29 DE ABRIL DE 2021
ARTIGOS

Sonhar e agir

Mr. Dreamer

Tem uma geração de gaúchos que rapidamente vai entender a história que vou contar. Me refiro a vocês que foram jovens na década de 1970 e viveram comigo uma das melhores aventuras de minha vida. Que cresceram com o Transasom, o programa de rádio e de TV que entrou no ar em 1973 e depois percorreu o Estado em animados bailes de rock.

Eu tinha 17 anos quando vocês me conheceram. Era um guri provocando as estruturas conservadoras da Rádio e da TV Gaúcha, hoje RBS TV, num tempo em que o rádio era apenas AM, e os canais de TV eram somente os abertos. Deu pra entender?

Trabalhar com música estava no meu DNA e o Transasom foi uma grande paixão, muito mais do que um sonho. Ser o comunicador que mostrava os shows de rock internacionais, entrevistava os artistas nacionais e abria espaço para os gaúchos emergentes foi maravilhoso. Fui uma das pessoas mais felizes do mundo por causa de vocês, que me deram, além da audiência, muito carinho.

Em 1979, no auge do sucesso, tive meu sonho interrompido. Por que parei de fazer o que mais gostava? As respostas na vida nem sempre vêm quando a gente quer. Eu mesmo levei 40 anos para descobrir.

A partir desta quinta eu as torno públicas no filme Mr. Dreamer, que estará disponível na plataforma do NOW (Claro) e, em maio, no Globoplay.

Mr. Dreamer foi concebido e criado com duas pessoas que mergulharam comigo nesta busca. Meu respeito e admiração à Flavia Moraes, que dirigiu, e ao Marcélo Ferla, que escreveu esta história, e também aos mais de 30 profissionais envolvidos na produção. Passamos por uma Dublin que ainda respirava o velho normal, onde conheci jovens talentosos, e depois por um Brasil já abalado por essa terrível pandemia, onde precisei refazer muitas das minhas reflexões.

Partimos de uma busca pessoal para encontrar uma mensagem universal, que possa atingir vocês, seus filhos e seus netos, cientes de que o mundo urge por novas atitudes. E elas começam quando você olha para si mesmo e consegue responder: o que você está fazendo com a sua vida?

PEDRO SIROTSKY

29 DE ABRIL DE 2021
OPINIÃO DA RBS

DOSES DE INCERTEZA

A falta de doses para a segunda aplicação da vacina CoronaVac na maior parte dos municípios do Rio Grande do Sul e em outras unidades da federação aumenta a já demasiada variedade de incertezas que cerca o combate à pandemia da covid-19. É uma situação lamentável e que causa preocupação para centenas de milhares de gaúchos e autoridades da área da saúde, pelo fato de a imunização esperada não ficar completa. Mas infelizmente não é possível ser condescendente e afirmar que o atual contratempo é algo totalmente surpreendente. É apenas mais um episódio a demonstrar a incompetência do governo federal no gerenciamento da crise sanitária.

O caso, em primeiro lugar, reflete a falta de visão - para ser benevolente - do Planalto na negociação para a compra de vacinas de mais laboratórios, recusando diversas ofertas ainda no ano passado, quando os países com melhor desempenho agora no processo de imunização já tinham seus contratos firmados. É resultado ainda da diretriz equivocada que partiu do Ministério da Saúde, em meados de março, quando a orientação a Estados e municípios foi de que não seria necessário reservar parte das remessas para a segunda dose. O resultado é uma grande aflição, visível nos últimos dias nas enormes filas em farmácias e postos de saúde, uma espera que, na maior parte dos casos, se mostrou em vão.

A principal causa para a escassez de vacinas, atualmente, é o atraso do envio de insumos pela China para o Instituto Butantan. Neste momento, seria esperado que o governo federal, após a troca de ministro das Relações Exteriores, buscasse melhorar o relacionamento com Pequim, após diversos ataques desferidos pela ala ideológica do governo. Foi péssima, neste sentido, a manifestação captada do ministro da Economia, Paulo Guedes, com informações equivocadas e distorcidas sobre a origem do novo coronavírus e eficácia de vacinas chinesas. Ao menos houve grandeza do ministro em tentar se desculpar. Nunca é demais lembrar que a CoronaVac responde por mais de 80% das doses aplicadas nos brasileiros até agora.

A revolta das pessoas que foram aos locais de vacinação e saíram sem a segunda dose é legítima, mas é injusto descarregar a inconformidade nos profissionais de saúde e voluntários que atendem a população, como se verificou em alguns casos. Eles também estão de mãos amarradas e frustrados diante da imprevidência e do descaso que se materializa na falta dos imunizantes.

Sabe-se que a CoronaVac precisa da segunda dose em torno de três semanas depois da primeira para que tenha seu efeito potencializado ao máximo. Especialistas, no entanto, ressaltam que, apesar do atraso maior, não há significativo prejuízo à imunidade. Segue sendo importante tomar a segunda aplicação. Assim, a população gaúcha precisará, infelizmente, de três doses. Duas de vacina e uma extra de paciência. Espera-se que seja possível, como projeta o Ministério da Saúde, contar com novas remessas a partir dos próximos dias.


29 DE ABRIL DE 2021
L.F.VERISSIMO

Paciência

O que eu estou fazendo, pergunta você, jogando Paciência no computador em vez de trabalhando?

Sua pergunta inclui dois pressupostos enganosos.

O primeiro é de que Paciência seja um jogo. Não é. Um jogo seria um embate entre forças equivalentes: você e um ou mais adversários e suas respectivas habilidades, o acaso, a lei das probabilidades e a sorte de cada um. Na Paciência de computador, você pensa que está enfrentando você mesmo numa máquina pretensamente neutra, e não está. A máquina não é neutra. Foi programada para frustrar suas repetidas tentativas de derrotá-la - justamente para testar sua paciência - e eventualmente deixá-lo ganhar. Você não ganha porque acertou, ganha porque o computador, depois de humilhá-lo bastante, lhe concedeu o prazer fugaz de uma vitória. Computadores, apesar do que pensam alguns, não têm alma. Mas, se tivessem, seria maligna.

Outro engano é pensar que eu estou, vá lá, " jogando" Paciência "em vez de" trabalhando. A Paciência - é o que eu vivo me dizendo, para me justificar - faz parte do trabalho. Gosto de pensar que Paciência é uma maneira de ocupar a superfície do cérebro enquanto lá no porão, onde estão as caldeiras e o canteiro de ideias, o cérebro profundo produz sem ser distraído. O único problema com essa analogia é que muitas vezes a Paciência ocupa quase uma tarde inteira sem que o porão produza uma boa ideia sequer. De qualquer maneira, a Paciência substituiu os rituais a que muitos escritores se dedicavam antes de começar a escrever em tempos pré-eletrônicos. Paciência é a versão moderna de afiar o cálamo e fazer rabiscos, à espera da inspiração.

Paciência também serve para pensar na vida, esse assunto inesgotável. Pela superfície do cérebro passa de tudo enquanto perseguimos mais uma ilusão de vitória sobre o computador, dos buracos negros ao meio-campo do Internacional. Eu estava pensando em como a Paciência nos dá uma falsa ideia de que podemos controlar resultados que, na realidade, já estão programados na máquina e me lembrei de uma frase ótima, acho que do Bashevis Singer: o homem está condenado ao livre-arbítrio. É uma frase que se contradiz, portanto uma verdade e uma mentira ao mesmo tempo. Estar condenado é não poder controlar seu destino, mas estar condenado ao livre-arbítrio é estar condenado a escolher seu destino, o que também é assustador. Não temos a certeza de que o destino da nossa espécie está escrito nas estrelas, o que torna o livre-arbítrio um inferno solitário, uma condenação. Melhor acreditar que foi a maestria com que movimentamos as cartas eletrônicas na tela que nos deu a vitória sobre o computador, mesmo sabendo que não foi.

O que eu estou fazendo, jogando Paciência neste computador? Adiando o máximo possível a hora de parar e escrever esta crônica.

Luis Fernando Verissimo está em licença médica.

Esta coluna foi publicada originalmente em 8 de março de 2015

L.F. VERISSIMO

29 DE ABRIL DE 2021
INFORME ESPECIAL

Em nove meses, 23,7 mil garrafas são apreendidas no RS

Desde julho do ano passado, 23,7 mil garrafas foram tiradas de circulação nas fronteiras e divisas do Rio Grande do Sul. De acordo com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, a imensa maioria é de vinho. Esse é um dos resultados do Programa Vigia, sob os cuidados da pasta. Os cálculos oficiais apontam que a apreensão de produtos oriundos de contrabando e descaminho causaram um prejuízo de R$ 17.093.440,61 às organizações criminosas. Além das bebidas, foram interceptadas 1,9 mil toneladas de drogas e de outros produtos.

Em abril, o Vigia completa dois anos. No Rio Grande do Sul, conta com 20 agentes trabalhando diuturnamente, com previsão de aumento do efetivo em maio. O programa conta com as participações da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil, Brigada Militar, Força Nacional de Segurança Pública, Corpo de Bombeiros, Ibama, Receita Federal, Agência Brasileira de Inteligência, Exército, Marinha e Força Aérea.

TULIO MILMAN

quarta-feira, 28 de abril de 2021


28 DE ABRIL DE 2021
DAVID COIMBRA

Como seria viver sem vacina e com coronavírus

E se o coronavírus tivesse atacado a humanidade ANTES da invenção da vacina?

Pense nisso.

A vacina foi inventada por um médico inglês, Edward Jenner, que trabalhava no campo. Ele observou que as mulheres que tiravam leite das vacas eram imunes à varíola, que era a grande praga da época. A varíola matava de uma morte horrenda, em meio a febre, pústulas, coceira e dor.

Jenner percebeu que a imunidade das leiteiras era adquirida depois que elas contraíam a varíola bovina. Então decidiu fazer um teste digno do doutor Mengele: raspou o pus da ferida de uma das infectadas e tomou um menino de oito anos de idade, filho de seu jardineiro, para ser sua cobaia. Jenner inoculou o pus da varíola bovina no menino, que contraiu a doença. Só que de forma leve, como acontecia com as leiteiras. Ele se curou e Jenner esperou seis semanas. Então, pegou o menino mais uma vez e lhe inoculou o vírus ativo da varíola humana. O que houve com o menino? Nada. Ele estava imunizado contra a varíola.

Hoje, Jenner seria preso, mas sua descoberta salvou milhões de vidas e possibilitou à humanidade a erradicação da varíola.

Pois imagine se o coronavírus surgisse antes do século 18. Ele mata menos do que a varíola e outras pandemias do passado, como a da peste negra, isso é verdade, mas é mais contagioso e tem a capacidade solerte de produzir insidiosas mutações, cepas novas e mais agressivas.

Mesmo que não morra, ninguém quer contrair uma doença dessas, que pode deixar sequelas, que pode fazer a pessoa sofrer barbaramente com falta de ar, dores musculares, cansaço e outros males. Assim, as pessoas, completamente desprotegidas da ferocidade do vírus, se afastariam umas das outras, se reuniriam em pequenos grupos em que todos estivessem não contaminados e evitariam o contato com indivíduos de fora.

Para sobreviver tendo o mínimo de interação, as pessoas voltariam ao campo e viveriam, com os membros de seu grupo, em fazendas coletivas. Seria um retorno à Idade Média, só que sem feudalismo. As cidades seriam esvaziadas e os países se fragmentariam. Cada clã teria a sua própria lei. Sem estímulo para as grandes invenções, nem ambiente para isso, todos viveriam sem eletricidade, sem internet, sem telefone, sem automóvel e sem torcida nos estádios. Assim seria para sempre, porque, não havendo vacina, o vírus proliferaria e grassaria, lépido e impune. O mundo seria outro, seria rural, calmo e ignorante.

Portanto, acrescente o nome de Edward Jenner nas suas orações, hoje à noite. Ele foi um irresponsável ao arriscar a vida do filho do jardineiro. Mas, graças a ele, você tem um frízer para lhe gelar a cerveja e uma TV para ver os gols da rodada.

DAVID COIMBRA

28 DE ABRIL DE 2021
OPINIÃO DA RBS

A RETOMADA DA REFORMA TRIBUTÁRIA

Chegou-se a temer que, em meio à pandemia e às crises políticas constantes, a realização de reformas essenciais para o país fosse mais uma vez adiada. O receio se converte agora em expectativa positiva com o comprometimento do presidente da Câmara, Arthur Lira, de fazer andar na Casa uma proposta de mudança do intrincado sistema tributário brasileiro. A promessa é de que a versão inicial do texto, relatada pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), seja apresentada já na segunda-feira.

Um dos principais entraves a um crescimento mais robusto do país puxado pelo setor privado é, sem dúvida, o emaranhado de impostos que acaba elevando custos das empresas, gerando insegurança jurídica e minando a competitividade. Uma racionalização nesta área é essencial para que as companhias, de todos os portes, possam despender menos energia com a apuração dos tributos que têm de pagar e mais com os seus negócios. A proposta a prosperar no Congresso, portanto, tem de partir da busca por descomplicar o sistema atual, procurando maior justiça tributária, sem elevar a já exagerada carga sobre o PIB.

Com a tramitação praticamente paralisada, a reforma tributária era até agora discutida em uma comissão mista formada por deputados e senadores. A proposta do governo federal, mais tímida, propõe unificar o PIS e a Cofins, criando um novo tributo chamado Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Há ainda outros dois textos sendo discutidos - um na Câmara e outro no Senado -, que são mais ousados, com a substituição de impostos cobrados pela União, Estados e municípios. Como é um tema extremamente sensível, com diversas opiniões divergentes entre setores da economia e entes federados, será necessária grande habilidade para se chegar a um bom termo e a uma proposta consensual que seja benéfica para o país. Um sinal positivo veio do encontro de Lira com o ministro Paulo Guedes. Os dois parecem começar a superar os atritos que chegaram ao ápice nas negociações sobre o Orçamento de 2021. Se Congresso e Executivo trabalharem afinados, a tarefa será menos desafiadora.

Mas o essencial é que exista uma verdadeira disposição dos dois poderes de tocar a reforma, e não seja apenas um movimento para tentar desviar o foco da grande pressão sobre o Planalto, de quem Lira é aliado, principalmente após a instalação da CPI da Covid, ontem, no Senado. Como disse o presidente da Câmara, o parlamento tem um dever a cumprir com a sociedade e, mesmo em meio às sucessivas turbulências, é preciso persistir com iniciativas basilares para a modernização do país e a superação do longo período de baixo crescimento da economia brasileira. Em seguida, será a vez de avançar com a reforma administrativa.


28 DE ABRIL DE 2021
PRIVATIZAÇÃO DE ESTATAIS

Venda da Corsan avança com primeira vitória na Assembleia

Numa sessão tensa e sob efeito da pressão da bancada governista pelo retorno das aulas presenciais na rede educacional do Estado, a Assembleia Legislativa aprovou ontem o fim da exigência de plebiscito para privatização da Corsan, do Banrisul e da Procergs. A medida, chancelada por 33 votos a 18, ainda precisa ser apreciada em segundo turno pelos deputados, mas o placar abre caminho para o Palácio Piratini preparar a venda da estatal de água e saneamento.

A proclamação do resultado foi cercada de confusão. Após o encerramento da votação, o placar anunciado inicialmente, de 33 a 19, foi corrigido para 34 a 18 porque o voto de Dirceu Franciscon (PTB), antes computado como contrário pela assistência, havia sido favorável. Quase três horas mais tarde, porém, a Assembleia acabou anulando o voto de Neri, o Carteiro (SD). Ele participava de forma remota da sessão e o áudio falhou no momento da coleta dos votos, mas a posição dele, a favor da PEC, acabou sendo computada por mímica pela Mesa Diretora. Houve protestos da oposição e, à noite, o voto acabou anulado.

De autoria do deputado Sérgio Turra (PP), a proposta de emenda à Constituição (PEC) deve voltar a plenário em 11 de maio. O fato de o Piratini ter conseguido número minimo de votos exigido, 33, pode indicar riscos de um futuro revés. A mudança no sistema de distanciamento controlado, anunciada durante a sessão pelo governador Eduardo Leite, foi fundamental para a vitória.

Desde a noite de segunda-feira, o governo enfrentava um ensaio de insurgência na base por causa da polêmica em torno da volta às aulas. Na véspera da votação, a maioria dos deputados acompanhou a sessão do Tribunal de Justiça que, por decisão unânime da 4ª Câmara Cível, manteve o veto às aulas presenciais durante vigência da bandeira preta no Estado.

Irritados com a derrota judicial e a postura considerada tíbia do governador, alguns parlamentares mostraram indisposição em votar a PEC caso não houvesse mudanças permitindo o funcionamento das escolas. Interlocutores do Piratini identificaram pressão partindo sobretudo de aliados com histórico de rebeldia às orientações do governo, como Any Ortiz (PPS), Paparico Bacchi (PL), Fran Somensi (Republicanos) e Franciane Bayer (PSB). Mais explícita, a cobrança partiu também dos dois integrantes do Novo, Fábio Ostermann e Giuseppe Riesgo.

Com medo que o movimento se alastrasse pela base, ainda na noite de segunda-feira Leite decidiu convocar reunião para a manhã seguinte. Por volta das 7h30min, ele convidou os presidentes da Assembleia, Gabriel Souza, e da Famurs, Maneco Hassen, além do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. Por quase duas horas, eles conversaram sobre alternativas que possibilitassem o retorno dos estudantes aos colégios.

Repercussão

Somente à tarde, em meio à votação, Leite divulgou o vídeo no qual anunciou que o Estado estava entrando em bandeira vermelha, liberando aulas presenciais. Também marcou para 10 de maio o fim do atual modelo de distanciamento controlado. No plenário, a repercussão foi imediata.

- Isso cheira a negociata, negociata para derrubar o plebiscito da Constituição em troca da mudança de critério das bandeiras para possibilitar uma abertura irresponsável das escolas - atacou Luciana Genro (PSOL).

Enquanto os oposicionistas se revezavam ao microfone e os governistas preferiam o silêncio, o Piratini fazia contas. No MDB, maior bancada aliada, havia duas defecções: Patrícia Alba e Tiago Simon. No PSL, Capitão Macedo afirmou que votaria contra. No DEM, Thiago Duarte também. Para não correr riscos, o PP enquadrou Issur Koch, que pretendia votar contra, e antecipou em três dias o fim da licença de saúde de Ernani Polo, recuperado da covid-19.

Um dos raros aliados de Leite a usar a tribuna, o líder do governo, Frederico Antunes (PP), disse que a PEC somente dispensava o plebiscito, sem permitir a venda imediata da Corsan. Antunes, porém, fez questão de salientar que uma edição extra do Diário Oficial colocaria o Estado em bandeira vermelha.

De nada adiantaram as cobranças da oposição, lembrando a promessa feita por Leite na eleição de 2018, quando garantiu que não privatizaria a Corsan e o Banrisul. Quando o placar eletrônico anunciou o resultado, começava a cair a última exigência de consultas prévias a população antes da venda de estatais - em 2019, a Assembleia já havia retirado a imposição para a CEEE, CRM e Sulgás. O mapa de votos demonstrou que a vitória de Leite só veio graças ao apoio do Novo, bancada independente que vive às turras com o governo.

- Cobramos uma sinalização concreta sobre a revogação da bandeira preta para imediata volta às aulas. Diante do compromisso firmado pelo governo em editar novo decreto ainda hoje (ontem), nos sentimos mais confortáveis para votar a PEC - disse Ostermann.

O Piratini já trabalha também na etapa seguinte. Nos próximos dias, chega à Assembleia um projeto de lei autorizando o Estado a vender a Corsan. Serão necessários 28 votos favoráveis.

FÁBIO SCHAFFNER


28 DE ABRIL DE 2021
MÁRIO CORSO

Vandalismo adolescente

Foram 60 vidraças estilhaçadas. Um jovem pegou o caminhão de fretes do pai e saiu, junto com um funcionário da empresa, a quebrar vidraças numa madrugada com uma arma de pressão. A ação começou em Porto Alegre e se estendeu a Viamão e Gravataí.

Descoberto, o jovem não teve justificativa convincente para seu ato, tampouco o vandalismo combina com sua vida pregressa. Como entender isso?

Não conheço esse jovem. Vou fazer uma hipótese baseado em casos de vandalismo que acompanhei de perto, talvez guardem semelhanças. Aliás, analisando adultos normais, não é raro encontrar algum episódio transgressivo no seu passado adolescente, do qual o sujeito se envergonha e não sabe explicar por que fez o que fez.

A adolescência sabe ser sombria e, quando emudecida, tende a ser pior. Atuações perigosas são mais comuns em quem sente-se condenado a ocultar o que sente e pensa. Quem trabalha com adolescentes sabe que, nesses casos, são mais frequentes os comportamento agressivos, toxicômanos, destrutivos, automutilações e até risco de suicídio.

Como uma panela de pressão, o adolescente precisa de válvula para sua angústia. O que esvazia a pressão é a possibilidade de expressar a agressividade de outra forma. Às vezes, simplesmente poder dizer que odeia a todos e que quer que o mundo se exploda. Em resumo: a intimidade com as suas pulsões agressivas, aliada à possibilidade de expressá-las, tem o poder de refrear os atos.

Saber viver em sociedade é domar e/ou canalizar nossas tendências destrutivas. Na adolescência ainda não temos carteira de habilitação das nossas condutas, temos medo de perder o controle. O jovem não dá conta sozinho do carrossel de sentimentos de que pode ser tomado, a força do ódio ou a premência do desejo podem ser inebriantes.

Certos discursos, como o religioso, ou mesmo o do politicamente correto, não dispõem ou aceitam as zonas cinzas das emoções humanas. Para estes, existe o preto e o branco, o bem e o mal, e isso deixa uma pessoa desarmada para entender e suportar as contradições que vive. Não conseguem representar a pluralidade do que experimenta, especialmente sua inexplicável agressividade com quem ama. Porém, crescer é viver tempestades de amor e ódio pelos mais próximos.

Adolescer é nascer outra vez, desta vez para a sociedade. O adolescente já tem o amor paterno, o desafio é inserir-se no mundo, criar uma respeitabilidade entre seus coetâneos. Sair de casa, no sentido metafórico, sair do guarda-chuva afetivo dos pais, é sua missão. Quando fracassa em circular socialmente, acaba odiando os pais por projeção, acusa-os de querer retê-lo em seu mundo caseiro. Ou então, ataca genericamente o mundo que não o "quer", e produz vandalismo aleatório, azar do que estiver pela frente.

MÁRIO CORSO

terça-feira, 27 de abril de 2021


27 DE ABRIL DE 2021
DAVID COIMBRA

O blusão superpoderoso

Conheço bem esse clima de meados de outono, encaminhando-se para o inverno de Porto Alegre. Conheço bem. Mas seis anos morando longe me fizeram esquecer do ar fino e suavemente frio das manhãs desta época do ano. A gente se esquece, mas basta experimentar uma única vez a velha sensação que tudo volta à cabeça. Então, recordo: neste pedaço do ano, minha mãe ou minha avó começavam a fazer blusões para mim.

Tive vários blusões feitos por elas, de boa lã de ovelha da fronteira com o Uruguai, fronteira doble-chapa. Um deles, já contei essa história, era em dois tons de cinza, antecipando em dezenas de anos a Dakota Johnson, só que mais modesto.

Com ele fui cobrir uma final de turno de Criciúma x Joinville, em Joinville, no famoso Estádio Ernestão. Era um domingo frio. O Criciúma não tomaria conhecimento do adversário (que era muito bom, com Nardella centralizando o jogo no meio-campo) e venceria por 2 a 0. Mas antes disso cheguei ao estádio bem cedo.

Sabia que teria muito trabalho e, de fato, o editor de esportes Luiz Zini Pires me pediu para escrever oito páginas. Tudo bem, era assim, na época. O problema foi que mal entrei no estádio, um gaiato arremessou lá da arquibancada uma sacola cheia de urina, que ele colheu dos torcedores solidários. O troço me acertou no lado da cabeça, espalhou-se até a cintura e eu fiquei todo molhado. Cheguei a pensar em tirar o meu blusão, mas fazia frio. Assim, deixei o troço secar e fui em frente. Só tomei banho depois da meia-noite. Era dura a vida do repórter nos anos 80.

Mas tenho outras lembranças mais bem cheirosas dos blusões que me faziam a vó e a mãe. Uma delas de quando ainda estava no Primeiro Grau, não sei mais como essa etapa do ensino se chama. Eu era pequeno, mas ia sozinho para a escola, a Arthur da Costa e Silva, o célebre "Costinha", nos fundos do Parque Minuano.

Era inverno e a geada embranquecera os terrenos baldios. Parecia que, naquele tempo, fazia mais frio, tanto que a gente via geada em Porto Alegre. Antes de eu sair de casa, que ficava na Rua Serafim Alencastro, perto do clube, minha mãe deu uma última ajeitada na minha roupa e disse:

- Esse blusão é de uma lã boa feito por mão boa, mão de mãe. Vai te proteger.

Aquilo, para mim, foi como uma oração. Ou uma promessa. Avancei pelas ruas do bairro com confiança, sem sentir medo ou frio, sem pensar no futuro, apenas acreditando que tudo daria certo. Minha nova segurança me fez tão bem que lembro te ter tido um ótimo dia no Costinha, inclusive marcando um gol no joguinho da hora do recreio. Mais tarde, ao voltar para casa, já não fazia mais frio. O sol aquecera o dia. Mas eu não tirava meu blusão por nada. Quando minha mãe me viu, gritou:

- Vai botar o sarampo pra fora! Tira esse blusão!

Eu balancei a cabeça. Fiz que não. O blusão me protegia.

Quando parei de acreditar nos superpoderes do blusão? Não sei. Não lembro. Mas agora, com o tempo esfriando levemente no Rio Grande, aquela sensação boa volta. Parece que tenho cá comigo algo especial, parece que não preciso me preocupar com o futuro. Então, avanço sem medo e sem frio, de peito estufado, cheio de confiança. E, quem sabe, talvez faça um golzinho na hora do recreio.

DAVID COIMBRA

27 DE ABRIL DE 2021
OPINIÃO DA RBS

O BRASIL NO ESCURO

É reprovável e preocupante a inviabilização do Censo Demográfico previsto para este ano pela falta de recursos. Realizado em regra a cada 10 anos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o levantamento não saiu em 2020 devido à pandemia, mas acabou sepultado novamente devido ao corte de verbas no Orçamento de 2021. Dos R$ 2 bilhões inicialmente previstos para o trabalho, restaram R$ 57 milhões.

A impossibilidade de realizar o Censo joga o país no escuro. Impede- se uma ampla e indispensável coleta de dados que possibilitaria traçar um raio X detalhado do Brasil e da realidade da população. A pesquisa é essencial para a calibragem de políticas públicas dos três entes federados. São dados que permitem conhecer as mudanças na demografia, como o ritmo do processo de envelhecimento, desigualdades regionais, informações sobre moradia, saneamento, renda, saúde e educação, entre tantos outros. Interromper o levantamento significa criar um apagão de dados que dificulta o planejamento do país para os próximos anos. Deixam de ser gerados e conhecidos elementos que seriam de grande importância para se ter uma melhor noção dos efeitos da pandemia e ações para superar as sequelas da crise sanitária e econômica.

As informações do Censo não são importantes apenas para os gestores públicos. Os dados, com grande nível de pormenorização, são largamente usados por empresas e empreendedores. Servem para nortear negócios e investimentos, por exemplo, de acordo com o perfil da população de determinada área, possibilitando mapear oportunidades e a demanda por produtos e serviços. Como o último Censo foi realizado em 2010 e o país experimentou significativas mudanças desde então, deixar de fazer o Censo com a regularidade prevista cria um vácuo estatístico que, ao fim, significa um retrocesso que seria inimaginável há poucos anos.

Lamenta-se que, entre as razões que levaram à inviabilização do trabalho, estejam as prioridades questionáveis estabelecidas pela negociação política entre governo e Congresso para o Orçamento 2021, com privilégios, por exemplo, a emendas parlamentares. São destinações com objetivo claramente eleitoreiro, enquanto os orçamentos da saúde e da educação, apenas para citar dois exemplos, tiveram cortes significativos. Com a impossibilidade de realizar o levantamento neste ano, o mínimo que se espera é que o governo federal se comprometa para que a tarefa seja executada, inadiavelmente, em 2022, com o início da preparação, como a atualização do cadastro de endereços e a aquisição dos equipamentos necessários, o mais rápido possível. Não é aceitável que o Brasil se torne um desconhecido para os brasileiros.


Teste de aglomeração

Acompanhei pela televisão, no último domingo, o jogo final da Copa da Liga da Inglaterra, entre Manchester City e Tottenham Hotspur. Foi um momento histórico do futebol em tempos de pandemia: 7.773 torcedores presentes no Estádio de Wembley. Todos devidamente testados e negativados, a maioria com máscara no rosto e a célebre fleugma britânica até na hora de festejar o gol. Cada um no seu quadrado, sem abraços calorosos ou gritos viróticos no ouvido do vizinho de arquibancada.

Os ingleses estão na vanguarda da luta contra a covid-19. A vacinação está bem adiantada e os números mostram redução continuada das taxas de infecções e óbitos. Por isso, o governo britânico incluiu a presença de público no estádio como parte do programa de afrouxamento das restrições que incluíram ao longo do primeiro ano nada menos do que três períodos de lockdown.

Negacionista no início da pandemia, quando fazia questão de andar sem máscara e apertar a mão até mesmo de pessoas contaminadas, o primeiro-ministro Boris Johnson foi mudando de opinião à medida que aumentava o número de doentes e, principalmente, depois que ele próprio passou pelas agruras da enfermidade. Acabou capitulando completamente diante da realidade e abraçou as recomendações de médicos e cientistas.

Agora os britânicos ensaiam uma saída planejada, cuidadosa, um passo de cada vez e o sinal de alerta permanentemente ligado.

Num estádio com capacidade para 90 mil torcedores, permitiram a presença de 8 mil. E deram um espetáculo de prevenção e bom senso, com direito a futebol bem jogado, num gramado impecável e com regras de civilidade de causar inveja, como a colocação de bolas em suportes distribuídos estrategicamente à beira do campo, de modo a evitar a intervenção direta de gandulas. Até mesmo as medalhas conquistadas pelos campeões foram recolhidas numa caixa pelos próprios atletas, sem a necessidade de terceiros para colocá-las nos seus pescoços.

Um dia chegaremos lá. God save the Queen. E todos nós.

NÍLSON SOUZA 


27 DE ABRIL DE 2021
INFORME ESPECIAL

Volta às aulas: ninguém vai ganhar no grito

De acordo com a lei e com a ética, a Justiça não combina julgamentos antes de eles acontecerem. Homens públicos experientes deveriam saber disso. Magistrados podem e devem ouvir os argumentos das partes, sempre de forma equilibrada e transparente. Mas a decisão tem hora, local e rito para se tornar pública. Portanto, nesse contexto atual, qualquer iniciativa de volta às aulas presenciais só deveria ser definida depois de uma manifestação inicial do Judiciário, sempre provocado para poder agir. Importante ressaltar: o juiz, quando responde a uma dúvida legal, foi perguntado por alguém. Cada um no seu papel: os governos administram e fazem a gestão. A Justiça se pronuncia sobre a legalidade desses atos.

Vivemos tempos complexos, em que indefinições são inevitáveis. Depois de cobrir o Judiciário gaúcho por quase 30 anos, posso afirmar: ninguém vai ganhar no grito, embora pressões e opiniões sejam legítimas e necessárias. É preciso compreender o tempo e a função de cada parte. Porque aos olhos da população, confusa no meio da queda de braço, fica a sensação de que o sistema bate cabeça e não funciona, justamente na educação, uma área definida por todos, pelo menos no discurso, como prioritária.

TULIO MILMAN

segunda-feira, 26 de abril de 2021


O surpreendente casamento de Kelly Mattos e Eduardo Gabardo

Eram 11 horas de sábado, eu tomava o meu café da manhã tardio, quando luziu no meu celular uma mensagem da Kelly Mattos:

"Posso te pedir um favor?"

"Mas é claro".

"Tu quer ser meu padrinho de casamento com o Gabardo e fazer o discurso na cerimônia?"

"Nossa! Que honra! Lógico que aceito! Quando será o casamento?"

"Dentro de uma hora".

"Hein?"

Foi isso mesmo que você leu, perplexo leitor: a Kelly e o Gabardo decidiram se casar assim, de inopino, e os convidados virtuais seriam apenas as mães deles e o padrinho. No caso, eu. Tudo foi feito rapidamente, no estilo kellyano. Logo, eu tinha de correr. Arrumei-me mais ou menos, ajeitei o cabelo, botei uma camisa e fui escrever o discurso. Em uma hora, o celular tocou e lá estávamos eu, a mãe da Kelly, Maria Lúcia, sentada na areia da praia, e a do Gabardo, Nara, ainda com um ar de incredulidade no rosto.

O Gabardo entrou na capelinha da Restinga de tênis, bermudas e camiseta branca, mantendo seu espírito esportivo, ladeado por duas crianças, uma com camisa do Grêmio, outra com camisa do Inter, mantendo sua neutralidade de repórter. A Kelly estava de vestido branco, muito feliz. O padre Ceron realizou a cerimônia com muita concentração, eles trocaram juramentos e pronto! Estavam casados. Saíram da capelinha sob chuva de arroz atirado pelas crianças do abrigo mantido pelo padre.

Antes disso, claro, li meu discurso. A Kelly chorou ao final. Então. considerei que fui bem-sucedido, apesar de ter escrito às pressas. Leia você também, porque o que escrevi vem do coração. É exatamente o que desejo aos noivos:

"Tenho até medo dessa junção da Kelly com o Gabardo. Até medo. Quem conhece os dois também terá. Porque a Kelly, segundo o meu amigo Admar Barreto, não é uma só; são várias. São Kellys Mattos, a todo momento fazendo uma coisa diferente, inventando, mobilizando, fazendo acontecer.

É isso: a Kelly faz acontecer.

Já o Gabardo atua em silêncio. Você nunca sabe o que ele está fazendo, mas sabe que ele está fazendo. O Gabardo fica quieto e, de repente, estoura com uma grande notícia, um furo espetacular, uma informação vibrante que só ele seria capaz de levantar.

O Gabardo, a seu modo, também faz acontecer.

Eles são tão ubíquos, tão cheios de poderes especiais, que a união deles seria como se a Mulher-Maravilha se casasse com o Batman. Imagine o que eles farão juntos e os filhos que sairão desse matrimônio.

Ah, sim, esses dois, estando unidos, vão aprontar muitas.

Mas o que mais espero que eles aprontem não tem a ver com suas imensas qualidades profissionais. Nada a ver com seus superpoderes. Não.

Espero que a Kellenzinha possa derramar sobre o Gabardo vigorosos raios da sua doçura e do seu carinho. E que ele retribua da mesma forma, que seja sempre compreensivo e sempre lhe dê atenção.

Mas a liga dessa associação não poderia ser outra senão o amor. Que o amor esteja sempre entre eles, que se solidifique e se fortaleça e assegure essa união. Que eles avancem em meio às inevitáveis vicissitudes da vida e que, mais tarde, quando estiverem bem velhinhos, e já não tão ativos, eles lembrem dos seus tempos de super-heróis e olhem para a vida toda que tiveram juntos e digam, sorrindo um para o outro: valeu a pena".

DAVID COIMBRA 



26 DE ABRIL DE 2021
OPINIÃO DA RBS

O TESTE DAS REABERTURAS

Em todo o mundo há um enorme esforço para que as escolas fechem apenas em último caso. Não foi até agora o caso do Brasil, onde uma série de atividades conseguiu reabrir as portas em meio à pandemia, enquanto os colégios continuavam fechados. Na sexta-feira, o governo gaúcho decidiu permitir a retomada das aulas presenciais a partir de hoje na Educação Infantil e do 1º e 2º anos do Ensino Fundamental nos municípios que adotam a cogestão, mesmo que permaneçam sob bandeira preta, mas no domingo, uma nova decisão judicial reafirmou que a volta não pode ocorrer nas circunstâncias atuais. A batalha nos tribunais sobre o tema pode persistir, com nova reviravolta, ou então será preciso aguardar a melhora dos indicadores avaliados pelo modelo de distanciamento controlado do Piratini. Mas mais cedo ou mais tarde, o regresso ocorrerá, e o principal aspecto a ser observado é o cumprimento rígido dos protocolos sanitários para minimizar o risco de contágios.

Mesmo que não obrigatória, a desejada volta às aulas presenciais deve estar apoiada em medidas responsáveis e ser considerada um teste, até que o quadro da covid-19 se amenize de forma sustentável. O mesmo vale para todas as atividades que necessitem da presença física de pessoas em ambientes de trabalho ou de ensino. Qualquer afrouxamento de restrições depende de um tripé a ser observado: regras claras, responsabilidade individual e fiscalização ativa do poder público para inibir inconformidades. No ensino, é preciso atenção especial à rede pública, com carências materiais maiores. Enquanto as instituições privadas mostram-se bem mais preparadas, o próprio governo do Estado admite que parte dos colégios sob sua gestão apresenta deficiências. É preciso saná-las o mais rápido possível, como promete o Piratini, assim como incluir professores e funcionários da área nos grupos prioritários para a imunização.

Os números atuais da covid-19 no Estado indicam redução das internações e de ocupação de UTIs. É uma boa notícia, mas não pode inspirar a falsa sensação de normalidade ou de que o pior já passou. Este sentimento, há poucos meses, mostrou ter sido um grave equívoco e levou a um relaxamento que ajudou a elevar rapidamente o número de casos, levando ao caos nos hospitais e à disparada na quantidade de mortes. Os indicadores, cedendo lentamente, mantêm-se em patamar elevado, e eventuais descuidos podem acarretar um novo e indesejável ciclo de aumento de pressão sobre o sistema de saúde. Com a vacinação letárgica, a palavra de ordem é sensatez - coletiva e pessoal. Uma medida relativamente simples mas efetiva seria o incentivo ao uso de máscaras mais eficientes, como as de padrão PFF2/ N95.

Assim como crianças têm o direito à educação, que em casos de famílias sem acesso à internet de qualidade só é possível no formato presencial, diversos outros setores da economia reabriram e outros tentam a mesma permissão. Este é um dilema para os gestores públicos, pressionados pelo lado da saúde e pela necessidade de volta ao trabalho para muitos segmentos e para a população. Com a cobertura vacinal ainda baixa, qualquer flexibilização tem de ser criteriosa, cercada de cuidados, adaptações e correções necessárias. E, principalmente, contar com o comprometimento dos envolvidos.