27 DE FEVEREIRO DE 2021
LYA LUFT
Nós, os sequelados
(Não quero parecer pessimista com esse título, mas amorosa. Parece que o primeiro golpe, que pode deixar sequelas, é o nascimento. Depois, a família, carinhosa ou violenta; depois, a juventude com esperança ou mortificação; a adultez com seus fracassos ou conquistas, por menores que sejam; a velhice com afetos ainda, mas alguma irrecuperável perda. Hoje homenageio meus leitores condensando em prosa poemas vários, para que sintam que poesia é prazer e magia. E cura algumas sequelas.)
O mar dos meus amores é turvo de desencanto. Não é azul nem verde: é marinho. Na crista do sonho, um raro gesto faz desmaiarem as sereias. No mar das minhas dores, escuro do naufrágio do mundo, espero e escuto: alguém virá? O cavalo da espuma deixa pelo caminho a luz dos momentos que são mais que muito: são tanto e tão fundo. Meu mais secreto destino como o reverso das ilhas; maremoto marinho, calado alado e sonoro: mais que navego, imagino.
Eu pedia licença a Deus, encostava a testa no vão da porta e espiava: lá estavam os mortos, aquietados, cada um em sua gaveta, o rosto eterno que eu não via. (Os mortos, sim, me vigiavam.) Guardados naquele silêncio, dobras de vidro e metal, à noite, eu sabia, eles voltavam às casas onde tinham amado, esfregavam os rostos nos espelhos até sangrar, e seu lamento agudo gotejava no sono dos vivos, como chuva. Eu me retirava devagar pelo caminho de pedra, os olhos dos mortos grudados nas minhas costas.
No jardim moravam todos os segredos: as vozes cantavam entre as folhas, e choravam no vento. No horizonte, morros azuis da tinta que um anjo distraído deixara cair do céu. Nada parecia impossível, nem princesas nem unicórnios, nem fantasmas na noite. Todos os mundos que criei, pessoas que inventei, destinos que tracei, nasceram ali: perderam-se mas persistem, porque o que parece perdido existe.
Naquele tempo sem tempo, a verdade parecia estar nos livros: ali moravam as respostas e nasciam os nomes. Quanto mais procurei, mais me enredei na ramagem das indagações: as respostas não vinham, a verdade era miragem, a busca era melhor que a descoberta - e nunca se chegava. (Viver era mesmo sentir aquela fome.)
Na parede atrás de minha mesa, ombro a ombro, a menina e seu pai, em dois retratos, conversam no escuro da noite. Quando apago a luz e fecho a porta, eles riem baixinho desta que hoje sou: ainda tão distraída e desassossegada, cheia de encantamento, e susto. E dizem, meneando as cabeças: ela nunca vai mudar.
Estou sempre dando adeus: também ao desencontro e ao desencanto. Estou sempre me despedindo do ponto de partida que me lança de si, do porto de chegada que nunca é aqui. Estou sempre dizendo adeus: até a Deus, para o reencontrar em outra esquina de adeuses. Estarei sempre de partida, até o momento de sermos deuses: quando me fizeres dar adeus à solidão e à sombra.