segunda-feira, 5 de outubro de 2020


05 DE OUTUBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Perdoem Cortez

As universidades inglesas são pródigas em pesquisas sobre temas curiosos. Uma delas, tempos atrás, estudou a sorte. Existe sorte? Os pesquisadores concluíram que sim e, mais, garantiram que, empregando-se certas técnicas, a sorte pode ser aumentada.

Li uma matéria acerca desse estudo, achei que seria divertido, mas sabe que, ao fim e ao cabo, constatei que não era bobagem? Eles estão certos, a sorte pode, mesmo, ser aumentada. Quer dizer: você pode se tornar um sortudo, dependendo da sua atitude em relação à vida.

Não vou esmiuçar o assunto aqui, mas é óbvio, por exemplo, que, se você encarar o mundo de forma positiva, tudo se torna mais fácil. Ficar se queixando só faz crescer a dor.

Outro ponto mais sutil e mais sofisticado é o seguinte: preste atenção na sua intuição. Não no seu desejo; no seu pressentimento. Porque não se trata de algo transcendental, não se trata de nada místico ou cósmico ou mágico. Nada disso. Trata-se da sua inteligência mais profunda, aquilo que Kant localizava além da razão pura e que Freud dizia estar abaixo da consciência. Não são os astros ou os deuses que avisam você do perigo, é a sua experiência animal que identificou que há algo errado antes mesmo que seu cérebro possa fazê-lo.

Pensei nisso tudo devido ao Gre-Nal de sábado, que foi o clássico da desdita de Cortez. O Grêmio vencia por 1 a 0, tinha um jogador a mais e dominava o jogo com facilidade. Estava na iminência de ampliar o marcador. Aí Cortez primeiro cometeu um pênalti e depois foi expulso. Um jogo que poderia ter sido 3 a 0 para o Grêmio terminou em 1 a 1.

Desde então, os gremistas lamentam o resultado e culpam Cortez pelo que aconteceu. As ações de Cortez realmente foram decisivas no clássico, mas não se pode dizer que ele tenha sido "culpado". Em primeiro lugar, porque não houve intenção nem no lance do pênalti que gerou o gol do Inter, nem no da falta que gerou sua expulsão. Em segundo lugar, porque não chegou a haver imperícia. Açodamento, talvez. Imperícia, não.

O que ocorreu com Cortez foi a soma do acaso com, possivelmente, sua ânsia em acertar. No pênalti, ele entrou na jogada com os braços abertos numa tentativa de se equilibrar e no afã de impedir a progressão do adversário, e a bola subiu e bateu em sua mão. Depois, provavelmente na pressa em se redimir, ele foi com força numa dividida e escorregou na grama molhada, o que deu mais velocidade e, por consequência, mais violência ao lance. Por isso foi expulso. Não foi como a expulsão de Musto, que quis agredir Diego Souza.

Cortez não foi incompetente, nem foi mal-intencionado. Portanto, gremistas, não condenem Cortez. Perdoem-no. Ele só não teve sorte.

DAVID COIMBRA

05 DE OUTUBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

APOIO À INOVAÇÃO

Merece ser saudada a iniciativa de criar o programa Produtos Premium do Estado do Rio Grande do Sul, capitaneado pela Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia do governo Eduardo Leite. O caminho para desenvolver e fortalecer o tecido econômico local passa, necessariamente, por reformas e medidas que sinalizem o reequilíbrio fiscal, legando aos gaúchos melhores serviços nas áreas de segurança, saúde e educação, base para o progresso de qualquer sociedade. 

Transita ainda por iniciativas que tornem o ambiente de negócios menos hostil e por investimentos para recuperar e ampliar a infraestrutura do Estado, medida essencial em vista da nossa localização geo- gráfica, e assim melhorar a competitividade das empresas aqui instaladas e das que para cá virão. As carências do Rio Grande do Sul são conhecidas, mas não podem servir de pretexto para o imobilismo.

Ações mais localizadas, para reconhecer e agregar valor ao que os gaúchos têm de melhor na indústria, no campo e nos serviços, são, da mesma forma, primordiais.

A intenção do programa, na direção correta, é encontrar formas de estimular as cadeias produtivas do Estado, apoiando a inovação, a incorporação de tecnologia, as estratégias de marketing e o acesso aos mercados, promovendo o reconhecimento e a valorização do que é produzido aqui.

Como bem ilustrou o secretário Luís da Cunha Lamb, é costume elogiar a carne uruguaia, esquecendo-se de que, aqui mesmo no Rio Grande do Sul, a evolução e a padronização dos rebanhos nos últimos anos, centrando a produção nas melhores raças de corte, faz com que tenhamos hoje disponível um produto de qualidade superior. O mesmo vale para outros segmentos, como os vinhos e o florescente segmento do azeite de oliva produzido no Estado, com diversas marcas conquistando mais e mais reconhecimento internacional, com prêmios e aumento de consumo a cada ano. No ramo de bebidas e alimentos, na indústria metalmecânica, no segmento de calçados, no setor moveleiro, entre outros, existem empresas consolidadas, mas certamente vicejam pequenos negócios à espera de apoio para crescer.

O gaúcho é reconhecidamente, empreendedor, como prova a história de marcas que surgiram, se desenvolveram, ganharam o Brasil e o mundo com produtos e serviços de qualidade ímpar. Da mesma forma, milhares de pequenos e médios negócios formam uma base rica e sólida da economia do Rio Grande do Sul. Muitas vezes, uma oportunidade faz toda a diferença. O programa do governo gaúcho está convidando empresários de agroindústrias a se inscreverem no edital Techfuturo, que prevê financiamento para iniciativas ligadas à tecnologia. 

Em outra frente, é possível buscar maior visibilidade participando do chamado público Casos de Sucesso de Inovação do RS, até 24 de outubro, iniciativa que reconhecerá soluções e inovações em produtos, processos ou serviços. Fica a expectativa de que a iniciativa alcance seus objetivos e, de fato, auxilie os empreendedores do Rio Grande do Sul a alçar novos e maiores voos. Se conseguir, será uma valiosa contribuição para a prosperidade econômica do Estado e para o bem-estar das pessoas que aqui vivem.


05 DE OUTUBRO DE 2020
MERCADO DE TRABALHO

Horizonte carregado de incertezas

O horizonte para o mercado de trabalho carrega mistura de pontos positivos e sinais de preocupação no Estado. A desaceleração nos casos de coronavírus e a reabertura de empresas explicam o alívio. Já o alerta tem ligação com a incerteza gerada pela perda de fôlego em programas de estímulo à economia do governo federal. Um deles é o auxílio emergencial, que deve acabar no final do ano, em razão da penúria fiscal vivida pelo país.

- Acredito em movimento de contratação nos próximos meses, mas não vamos recuperar logo todos os empregos que foram perdidos. As empresas estão buscando fazer mais com menos gente neste momento - avalia a economista Maria Carolina Gullo, professora da UCS.

Mesmo com a possibilidade de reação gradual no mercado formal, a tendência é de que a taxa de desemprego avance nos próximos meses, lembra o professor Marcos Lélis, da Unisinos.

O indicador, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também contempla trabalhadores informais. Pressão

Para ser considerado desempregado, um profissional que perdeu a ocupação tem de procurar novas oportunidades. Com a flexibilização de medidas de isolamento, mais pessoas devem sair em busca de vagas, frisa Lélis.

- Vamos ter uma pressão na taxa de desemprego, mesmo com o crescimento do mercado formal. É que mais pessoas vão voltar a procurar trabalho - reforça.

Em agosto, a taxa de desemprego no Estado foi de 9,9%. À época, havia 562 mil pessoas desocupadas. As informações integram a Pnad Covid-19, pesquisa do IBGE que dimensiona os efeitos da pandemia no mercado de trabalho e na área da saúde.


05 DE OUTUBRO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO

Segredos e mentiras

A explosão do ônibus espacial Challenger e o acidente nuclear na usina de Chernobyl ocorreram, com alguns meses e quilômetros de distância, no mesmo ano de 1986. Os dois episódios guardam algumas semelhanças, além da vizinhança histórica, e uma delas é o fato de ambos terem virado minisséries recentemente. Chernobyl, exibida entre maio e junho do ano passado, na HBO, recebeu 19 indicações no Emmy e tornou-se uma das grandes produções da televisão mundial dos últimos anos. Menos ambiciosa, mas honesta, a série documental Challenger: O Voo Final, com quatro capítulos, estreou em setembro na Netflix.

Challenger e Chernobyl são, de alguma forma, produtos do mesmo tipo de arrogância. Tanto o projeto espacial americano quanto o investimento em energia nuclear da União Soviética serviam, entre outros propósitos, como exibições públicas de poder e avanço tecnológico. Quando as coisas deram errado - muito errado -, tanto o governo americano quanto o governo soviético tentaram, enquanto foi possível, diminuir o tamanho do vexame.

Na URSS, claro, foi muito mais simples. Sem uma imprensa livre nos calcanhares, o governo não teve qualquer obstáculo para impedir o compartilhamento de informações e dificultar as investigações. No caso da Challenger, demorou bem menos para que a causa técnica e as falhas nos protocolos de segurança da Nasa viessem a público. A minissérie mostra, porém, que tudo poderia ter sido evitado se burocratas encarregados de cumprir cronogramas e gerenciar orçamentos tivessem acatado a opinião dos técnicos que pediam o adiamento do voo por razões de segurança.

O nome mais célebre na comissão que investigou as causas do acidente da Challenger era o do físico Richard Feynman (1918 -1988), Prêmio Nobel de 1965. Oficiais da Nasa alegavam que a chance de falha do ônibus espacial era de aproximadamente 1 em 100 mil. Feynman mostrou que essa probabilidade estava mais próxima de 1 para 100 - e de quebra ainda descobriu que a borracha usada para selar as juntas do jato do foguete falhava em expandir-se quando a temperatura era igual ou inferior a 0°C, o que acabou causando a explosão. Na URSS, não por acaso, foram também os cientistas que ajudaram a desmontar a farsa montada pelo governo soviético.

De um lado, cientistas tentando fazer o seu trabalho. Do outro, governos que colocam vidas em risco e varrem os próprios erros para baixo do tapete tentando atrapalhar. Se o roteiro de 1986 lembra muito o de 2020, resta torcer para que a velha máxima de Abraham Lincoln continue valendo também: "Você pode enganar algumas pessoas o tempo todo, e todas as pessoas algumas vezes, mas não pode enganar todas as pessoas o tempo todo".

CLÁUDIA LAITANO

05 DE OUTUBRO DE 2020
INFORME ESPECIAL

As queimadas mentais

Ou você defende o planeta, ou o seu político de estimação. Chega um momento em que as duas militâncias são incompatíveis, sempre. No Brasil, já chegou.

Escrevi, nos últimos dias, dois textos apontando as incoerências ambientais do PT de Lula, que optou pela sujeira do petróleo e investiu bilhões no pré-sal, e do governo Bolsonaro, que se empenha em desmontar as leis de proteção aos mangues, restingas, rios e florestas.

Recebi vários e-mails indignados, o que não é novidade. O que me deixou surpreso foi o teor de boa parte deles, que me acusava de murismo e me exigia uma definição: "Ou tu é PT, ou é Bolsonaro. Te decide".

Com raras exceções, nunca culpo o leitor quando o que eu quero dizer não é compreendido. A obrigação de me fazer entender é minha. Mas, nesse caso, me absolvo. A culpa é do momento de radicalização do país.

Boa parte de nós, brasileiros, só consegue ler a realidade sob um prisma polarizado. É como se houvesse um filtro anteposto ao nosso olhar. Tudo o que se diga ou se escreva só se enquadra em duas categorias: esquerda petista ou direita bolsonarista. Muita gente fica confusa e desorientada quando essa lógica tacanha é desafiada. De certa forma, o radicalismo é confortável. É só bater um carimbo fácil.

A vida é bem mais do que isso. Me recuso a julgar uma pessoa unicamente pelo candidato em que vota e a avaliar uma ideia dentro de um espectro tão estreito. A radicalização é fumaça tóxica que embaralha a razão e a visão.

Para não incorrer no erro que condeno, encerro com um trecho de um e-mail do leitor José Bittencourt, que discorda de mim sobre um dos pontos centrais do que escrevi: a utilização de combustíveis fósseis "Os nossos políticos e governantes, de um lado e de outro, realmente, só pensam em dinheiro e poder. Contudo, não é o Brasil, é o mundo que não está preparado para se livrar do petróleo".

E assim, faz-se uma conversa.

TULIO MILMAN

sábado, 3 de outubro de 2020


03 DE OUTUBRO DE 2020
LYA LUFT

Um mundo não deserto 

Aí a gente acorda, pelas vidraças percebemos que está mais escuro do que deveria nesta época do ano: para quem, como eu, ama chuva, trovões e a sensação de abrigo que isso me dá - porque ando presa em casa -, maravilha.

Quando precisava ir à escola, em criança, e patear na lama vermelha da rua ainda não calçada na frente de casa, eu odiava. Mas agora, reclusa, vejo com certa alegria que vai chover. Seguidamente, aliás, quando mais aborrecida ou inquieta, me pego pensando, "se ao menos chovesse".

Nem eu sei que ritual psíquico remoto isso significa, mas é real. Claro que aí também penso nos pobres, nos desalojados, nos removidos de suas casas, nas aflições do mundo em geral, coisas que desde menina me atormentam. "Essa guria pensa demais", era uma das coisas que diziam de mim, além de "está sempre no mundo da lua" e "não aprende disciplina".

Mas o consolo que a chuva me dá, esse é verdadeiro e me faz um bem danado nestes tempos, repito, mais do que esquisitos. Vários amigos doentes; um ou outro entubado; um, queridíssimo, que chamo irmão, com sequelas permanentes, no Rio. Muito me ajudou, me salvou, mas agora, se pudesse decidir, talvez quisesse ir embora para esse lugar que ninguém sabe o que é, mas todo mundo espera que seja pelo menos melhorzinho.

Como disse Sócrates, quando mulher e discípulos se desesperavam ao seu redor, ele tendo de beber cicuta (porque afinal a democracia nem entre os gregos foi perfeita): "Por que estão chorando? Se morrer for um sono sem sonhos, que bom. E se morrer for reencontrar os amados que já se foram, que bom".

Não estou escrevendo sobre morrer, ou, como já escrevi em algum poema, sempre que digo morte, falo na vida. Então, por favor, há que viver direito, ao menos decentemente. Difícil, meio isolados. Difícil, preocupados com as pessoas queridas. Difícil, sem uma boa perspectiva para o fim da Peste do milênio, e com gente ainda achando tudo isso bobagem.

Mas há que viver, mesmo com o pai da Mafalda morrendo, 88 anos não está mal, e tanto de bom, inteligente, engraçado e verdadeiro nos deixou. Mesmo o pai da Mônica sendo injuriado com uma tirinha fake e besta, Mônica com piupiu de fora. Mesmo com gente incendiando de propósito um pedaço de floresta: mostraram claramente um imbecil criminoso caminhando pela beira da mata ressequida, puxando atrás de si o que parecia um trapo inflamado e tocando fogo nas macegas.

Há que viver e querer ser decente, direito, não bobo, mas um pouco otimista, nunca amargurado demais porque amargura contagia todos ao redor, mau humor da mesma forma. Não que a gente deva fingir, mas levantar o queixo, respirar fundo, pensar que, como dizia meu pai quando eu reclamava em criança "na guerra é muito pior", e torcer para que, além da guerra dos insultos, burrices, notícias fake e pequenas grandes maldades, as coisa não piorem ainda mais por aqui.

A gente precisa acreditar que, mesmo nas partes mais remotas, mais sofridas, não existe só deserto de árvores e gentes, mas que as gentes sempre vão acorrer, as árvores reflorescer -, se não formos demais ignorantes, metafisicamente burros, e permitirmos que as coisas, afinal, endireitem.

LYA LUFT

03 DE OUTUBRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Os padrões 

Ela tem 26 anos, é formada em Direito e trabalha num importante escritório. Namora um engenheiro de 28, os pais de ambos são amigos e a festa de casamento já está sendo planejada pelas duas famílias. Deram entrada num apartamento e dentro de dois anos ela quer engravidar. Enfim, é uma garota fora do padrão, pois, hoje, quem está na casa dos 20 e 30 se encontra mais perdido que cebola em salada de frutas. Entrou numa faculdade e desistiu, tentou montar uma confecção e não deu certo, namorou cinco anos e não se envolveu, namorou três semanas e foi morar junto, separou e foi viver fora, voltou e continua sem planos, mas tudo bem, é uma criança, recém fez 40. Seria este o novo padrão?

Mas tem aqueles que não se sentem perdidos, apenas não têm como meta juntar dinheiro, preferem realizar um trabalho que faça diferença na sociedade. Não pretendem se sacrificar para comprar um teto próprio. Não sonham em ter carro. Não planejam formar família, ainda que, um dia, possa acontecer. Pra já, querem apenas estabelecer conexões, viajar, ter experiências.

Talvez seja este o novo padrão: jovens atuantes, mas que não almejam chegar lá, pois "lá" é uma abstração. Diferente dos paralisados. Estes também sonham em produzir alguma coisa, só não sabem por onde começar. Grudam o rosto no celular, só se relacionam de forma virtual, deixaram os amigos de infância pelo caminho e andam no máximo com um ou dois apáticos que também não sabem onde fica a saída de emergência dessa bolha. Precisam de um empurrão imediato.

Parece uma sorte termos superado esta fase, não? Crescemos. Hoje temos uma vida estruturada e resolvida. Relação estável, endereço fixo, salário digno. Fazemos terapia, praticamos esportes e postamos maravilhas nas redes sociais: somos o protótipo da pessoa ajustada.

Tão ajustada quanto a arquiteta que se divorciou do marido e hoje se relaciona com uma parceira do mesmo sexo. Tão ajustada quanto o jornalista que abandonou a profissão para se aventurar na política. Tão ajustada quanto o avô que fuma baseado, o padre que corre maratona escutando rock, a filósofa que dá cursos de sexo tântrico. A maturidade também não tem uma única face.

O padrão único era cômodo. Jovens e adultos habitando um mundo previsível e imutável, testado e aprovado, que duraria para sempre, não tivessem sido atropelados pelo alcance ilimitado da informação, pela instantaneidade do tempo, pela diversidade dos costumes. Adeus, padrão. Não existe mais padrão. Agora cada um vive a seu modo, cada um inventa seu próprio destino. É um universo mais difícil, nem testado, nem aprovado, onde tudo pode ser realizado e não há garantia de final feliz, mas o durante tem sido inspirado. Não sei por que acho isso bom, mas acho.

MARTHA MEDEIROS

03 DE OUTUBRO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Não chame gente de animal 

Estou em campanha para que nenhum ser humano, homem ou mulher, desses que a gente vê a toda hora sendo violento, grosseiro, desrespeitoso, corruto e etc., seja chamado de animal.

Animal por quê? Animal parte para a ignorância sem motivo?  Destrói o lugar onde vive?

É racista?

Preconceituoso? Acaba com o futuro dos outros? Trata a fêmea feito lixo?

Se diverte com a desgraça alheia? Humilha? Espezinha?

Não há injustiça maior com um animal do que compará-lo aos incivilizados dos nossos dias. E nunca é demais lembrar que a falta de civilidade não tem nada a ver com classe social ou grana, como se viu no fim de semana passado, nas cenas do restaurante Gero, em São Paulo, e no Leblon, no Rio de Janeiro. Caiu o queixo até de quem já viveu bastante e viu de (quase) tudo.

Baixaria na Alta Roda, Elite Transviada, Se Minha Mercedes Falasse. Vergonha alheia em cartaz.

A nossa mania de chamar os piores humanos pelos nomes de espécies animais: que equívoco. Por que um sujeito que não vale nada é chamado de cachorro se os cães são os bichos mais fiéis que existem? Para protestar - por exemplo - contra um ministro do Meio Ambiente que decidiu passar a boiada e acabar com os critérios de preservação de áreas naturais, a turma se exalta: esse ministro é um cachorro!

Cachorro, vírgula. É um homem. Desprezível como os piores homens.

E o caso da galinha e da vaca? Bichos simpáticos e eternamente a serviço dos humanos. Nem vamos falar aqui dos maus-tratos que sofrem em situações de exploração para não estragar o dia dos leitores. Fato é que, para ofender uma mulher - e são muitos os motivos, como comportamento sexual, atuação política, atitudes de liderança, defesa de causas, para ficar nos mais comuns -, pessoal não deixa barato. Fulana é uma baita de uma galinha! Beltrana é uma vaca mesmo.

Não basta ofender as gurias pelas desrazões acima, ainda tem que botar dois animais dos mais dóceis e úteis no meio. Xingamento 100% sem noção.

Agora, enquanto o Pantanal queima, as imagens dos animais são de partir o coração. Bichos feridos, sem abrigo, sem água, sem comida, sem rumo. Mães tentando salvar suas ninhadas. Onças, jacarés e jiboias atravessando a estrada por instinto, só que não existe mais para onde fugir. Os macacos, que em outros tempos se diria que parecem gente, o que seria ofensivo a eles na atual situação, reagem com desespero. Isso tudo para alguns aumentarem seus já imensos, extensíssimos pastos.

O fogo também revelou a situação do Parque das Onças, no Mato Grosso, perto de onde ficam (ou ficavam) as pousadas mais caras. A região toda tinha um só funcionário para cuidar do único parque de preservação da onça pintada no mundo.

Orçamento: R$ 45.120 por ano. Ou R$123,60 por dia. Quantas outras reservas devem estar na mesma penúria?

É preciso dar o nome certo para quem está promovendo a tragédia no Pantanal, na Amazônia, no Brasil. Não são ratos, abutres, urubus, cobras, burros, nada disso. Não vamos ofender os animais.

O criminoso que está acabando com a natureza é o homem, sempre ele. Sempre miseravelmente humano.

CLAUDIA TAJES

03 DE OUTUBRO DE 2020
LEANDRO KARNAL

O ÓDIO MAGNÉTICO 

Há muitas maneiras de conceber. Posso supor que exista, entre duas pessoas que se enfrentam, um magnetismo cármico. Coisas acumuladas, asseveram alguns, em outras vidas. Viram, tornam a virar e reencontram quem detestam. Podemos supor, saindo do campo religioso, que seja um tipo específico de identidade. Ninguém ama ou odeia sem que exista alguma projeção. De forma quase matemática, também posso elaborar a teoria de que, se não gosto de alguém, cada vez que vejo a pessoa ela me incomoda. Assim, acabo imaginando que exista uma coincidência em constantes reencontros daquele ser em uma festa ou ao longo da vida. Talvez seja apenas o fato de que eu noto quando reencontro e suponho, de forma narcísica, que exista um plano acima de mim que me faz rever o rosto rejeitado. Deve ser como um farol vermelho: eu acho que pego muitos porque só noto o vermelho e considero o verde natural e adequado a minha impaciência. Por fim: seria apenas um acaso entre o bizarro e o poético?

Jürgen Stroop (1895-1952) foi um dos tantos canalhas nazistas que a guerra empoderou. Membro da SS, teve o trágico papel de reprimir o levante do Gueto de Varsóvia, em 1943. Não bastava matar os habitantes do gueto. Ele, pessoalmente, explodiu a Grande Sinagoga de Varsóvia a 16 de maio daquele ano. Ao apertar o botão dos explosivos, gritou Heil Hitler! A folha criminal do monstro cresceu: massacrou civis poloneses, foi repressor na Grécia e mandou executar prisioneiros norte-americanos. Esse humano infeliz e racista terminou preso após a guerra. Foi julgado no campo de Dachau e enviado para a Polônia, agora um país controlado pelo regime comunista que ele tanto odiou. Novo julgamento e abundantes provas do sadismo de Stroop. Neste momento, voltaremos ao primeiro parágrafo.

Com quem o monstruoso nazista dividiu cela? Kazimierz D. Moczarski (1907-1975) foi participante da resistência polonesa contra o nazismo. Tinha tentado matar Stroop mais de uma vez. Foram inimigos declarados nos anos da ocupação alemã. Enfim, estavam juntos, o nativo e o invasor.

O resultado dos meses de convívio na prisão Mokotów virou um livro: Conversas com um Carrasco (Conversations with an Executioner). Interessante comparar esse texto com a análise de Hannah Arendt sobre Eichmann.

Stroop foi dependurado em uma corda no dia 6 de março de 1952. Moczarski passou mais um tempo encarcerado e, depois da desestalinização, acabou sendo perdoado e solto. Os encontros dos dois foram publicados em uma revista e, depois da morte do polonês, surgiu o livro. Traduzido para o alemão, o francês e o inglês, virou um sucesso. Com o tempo, foi adaptado para a televisão polonesa, tornou-se documentário britânico e foi para o teatro dos EUA pela criação de Philip Boehm.

Stroop e Moczarski não se conheciam até a idade adulta. Durante a guerra, viraram inimigos absolutos. Se um dos dois tivesse conseguido, teria assassinado o outro com prazer. Ambos foram prisioneiros do mesmo regime polonês stalinista e conviveram por meses na mesma cela, na mesma prisão, na mesma cidade onde o ódio de um pelo outro tinha vicejado. No futuro, o polonês seria conhecido pela obra sobre o homem que mais tinha odiado e seu nome, per omnia saecula saeculorum, continuará associado ao do carrasco. Era a coincidência ou magnetismo cármico de que eu falei ao começo?

O encontro de dois inimigos em situação distinta magnetizou muitas narrativas. O cartaginês Aníbal e o romano Cipião travaram uma guerra acirrada por anos. Plutarco comparou as virtudes cívicas e militares de ambos. O ódio entre os dois generais parece tão impressionante que chegou a ter curso uma história apócrifa de que no final da vida, exilados, eles teriam compartilhado muitos momentos de conversas sobre os impérios que defenderam e que agora os rejeitavam.

Sabemos que o mundo político dá voltas surpreendentes e a ciranda dos holofotes é caprichosa. Quando um papa era coroado, alguém dizia ao recém-eleito que a glória do mundo era passageira (Pater Sancte, sic transit gloria mundi!). Algo similar era dito aos generais romanos em triunfo. Seria uma boa frase para todos que assumem cargos. Poderiam dizer algo mais desenvolvido ao que toma posse em qualquer cargo: "Você está no topo agora. O trono já pertenceu a gente que te combatia e em breve o poder voltará a ser dos teus inimigos. Cuidado! A cadeira do poder queima. Quem alto sobe alto cai. A glória política é a mais passageira de todas".

As frases poderiam ser entendidas com dois sentidos. Um homem sábio, porventura, pensasse: "É verdade, preciso pensar que a impermanência domina tudo". Se houvesse a remota hipótese de um menos consciente ser eleito ou indicado para um cargo, a reação poderia ser oposta: "Já que passa, vou aproveitar para enriquecer rápido e proteger minha família". Qual pensamento teria ocorrido ao ex-poderoso Stroop ao ser enforcado? É preciso ter esperança, e ela, geralmente, não está no poder.

LEANDRO KARNAL

03 DE OUTUBRO DE 2020
FABRO STEIBEL

A UNIVERSIDADE DO ESPAÇO 

A Estação Internacional Espacial (ISS) está estudando lançar a Universidade Orbital. O projeto está em fase bem inicial, mas já mostra o quanto o modelo de universidade aqui na Terra é limitado. Falta a universidade, no Brasil e no mundo, aprender com as lições que nos levaram à órbita. Uma delas é usar a internet para avançar nos desafios do milênio.

Se há uma coisa que a covid-19 nos ensina é que modelos híbridos precisam ser adotados por todos. Modelo híbrido é a forma de pensar o mundo considerando o mundo físico e o mundo digital como lados da mesma moeda. Pensamento híbrido é deixar de falar em "educação online" ou "ensino a distância" para pensar em "ensino". É parar de imaginar sala de aula para pensar em espaço de aprendizagem, online ou não.

As universidades são pouquíssimo abertas ao digital, quiçá ao pensamento híbrido. Prova disso é o quanto as faculdades (mesmo aquelas com anos de experiência em Ensino a Distância) suaram para não perder o ano acadêmico no primeiro semestre. No corre-corre de escolher plataformas para dar aulas online, e de saber quem tinha internet suficiente em casa, demos nosso jeitinho brasileiro. Mas ninguém estava preparado para usar internet para o ensino. Ninguém.

Se temos coworking de escritórios, por que não temos colaboratórios de medicina? Se temos marketplaces de saúde ou de eletrônicos, por que não temos o mesmo de cientistas? Se temos homeschooling para menores de idade, porque tão poucos professores usam ferramentas como Miro e Trello para "prototipar" soluções com os alunos entre as aulas? Mesmo as férias da graduação, duas vezes ao ano, poderiam ser híbridas. Até porque as aulas param, mas a pesquisa, não. Com isso, deixamos de ocupar o campus com mais pessoas, justo quando temos espaço para promover inclusão.

A ISS orbita sobre nossas cabeças com seis cosmonautas por vez. O que ela nos ensina sobre universidades? Primeiro, que tudo o que é teórico deve ser prático, aplicado. Exatas ou filosofia, a ciência espacial usa de tudo. Segundo, que países podem colaborar. Se na Guerra Fria todos trabalham em separado, a governança da ISS já é compartilhada (inclusive com o setor privado). E, por fim, a ISS é pensada com cabeça de interoperabilidade. Assista ao filme Apollo 13, com Tom Hanks, para entender o conceito e como um parafuso sem interoperabilidade nos fez fracassar na última tentativa de ir à Lua.

O exercício da Universidade Orbital está só no começo e é acompanhado de dois outros desafios, um relacionado à criação de negócios e outro aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A solução criada deve funcionar como um satélite, uma plataforma, de conexão de atores e práticas. A Universidade Orbital não será um campus no Espaço (a tecnologia não nos permite isso). Mas ela já nos ensina que nosso sistema de educação precisa dar mais voltas na órbita para se inspirar, e ser diferente. Para o infinito e além, onde nenhuma universidade jamais esteve.

FABRO STEIBEL


03 DE OUTUBRO DE 2020
COM A PALAVRA - CLAUDIA COSTIN - professora e pesquisadora, 64 anos

É PREFERÍVEL VOLTAR ÀS AULAS AGORA DO QUE ESPERAR A VACINA

Ex-ministra e hoje diretora de Inovação e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas, é uma referência em políticas públicas na área de educação no Brasil

Mesmo tendo atuado por muito tempo no serviço público, a professora e pesquisadora Claudia Costin ainda se impressiona com a atuação do governo federal na educação. E não de forma positiva: é a falta de protagonismo do Ministério da Educação (MEC) que a preocupa, sobretudo durante a pandemia. Ao menos, observa, a inércia federal deu espaço para que Estados e municípios arregaçassem as mangas e dialogassem. Claudia é um dos maiores nomes brasileiros quando se pensa em políticas públicas na área: foi professora-visitante da Universidade de Harvard, diretora Global de Educação do Banco Mundial e ministra da Administração e Reforma do governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje, é diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presta mentoria a três secretários estaduais e 50 municipais de educação de todo o Brasil. Nesta entrevista concedida por Skype, ela fala sobre a volta às aulas na pandemia, as boas práticas de países-modelo e sua recusa em ser ministra da Educação do governo Jair Bolsonaro.

O BRASIL VOLTA ÀS AULAS, MAS EM MUITOS ESTADOS A EPIDEMIA NÃO ESTÁ CONTROLADA NOS PARÂMETROS QUE OUTROS PAÍSES ESTAVAM QUANDO RETOMARAM. VOLTAMOS NA HORA CERTA?

Não sou epidemiologista, o que faço é ajudar secretários a preparar a escola para a retomada. O que certamente não queremos é voltar com escolas despreparadas. Por outro lado, surgiu uma narrativa de voltar só com vacina. Conversei muito com epidemiologistas e todos me disseram: vacina para amplas massas não aparecerá antes de 2022. Temos de organizar como fizeram países com cultura de contato físico como a nossa. Hoje, há a consciência de que, se as condições epidemiológicas melhoram, é preferível voltar às aulas do que esperar a vacina. Especialmente se olharmos para crianças de maior vulnerabilidade. Elas estão pior do que se estivessem na escola. Estão na rua, sem a rede de proteção social oferecida pela escola. Dentre as 79 economias que participaram do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil tem a segunda maior desigualdade educacional. Precisamos lidar com isso.

O GOVERNADOR DO RIO GRANDE DO SUL, EDUARDO LEITE, CONCLUIU QUE NÃO HAVIA CONSENSO SOBRE SE SERIA ADEQUADO OU NÃO RETOMAR AS AULAS PRESENCIAIS. EXISTE ALGUM CONSENSO?

Há dois consensos. O primeiro é que é fundamental usar máscara. A decisão do governador deve se basear em uma pesquisa recente, segundo a qual crianças com menos de 10 anos são vetores muito mais fracos de transmissão a adultos. Por serem geralmente assintomáticas, não tossem nem espirram, então não contaminam tanto. A segunda questão fundamental é ter retorno escalonado: não dá para ter uma turma de 35 alunos. Geralmente, outros países começaram a retomada com os alunos mais velhos.

A SENHORA VEM ACOMPANHANDO O TRABALHO DO GOVERNO GAÚCHO NA EDUCAÇÃO DURANTE A PANDEMIA?

Pouco. No Rio Grande do Sul, sou mentora apenas do secretário de Educação de Esteio. Conversei com o governador há dois meses.

SOBRE O QUÊ?

Se a volta deveria começar pela Educação Infantil e pela creche. Falei que achava muito arriscado crianças de dois anos ou menos voltarem. Aliás, saiu na resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) que é melhor deixar para mais tarde. As pesquisas mostram que a transmissibilidade é baixa, mas com criança muito pequena é difícil ter distanciamento. Acho que o ideal é creche não voltar agora.

HÁ VÁRIOS PROTOCOLOS CRIADOS NAS ESCOLAS, DESDE A OFERTA EM ÁLCOOL EM GEL ATÉ TAPETE SANITÁRIO E MEDIÇÃO DE TEMPERATURA NA ENTRADA. O QUE É BOBAGEM E O QUE FAZ DIFERENÇA?

O mais importante é organizar cozinhas, refeitórios e recreio para todo mundo não ficar junto - o ideal é cada classe ter o recreio separadamente. Ter tapetes faz algum sentido, mas é muito visual. A pia na entrada da escola faz muita diferença, assim como ver se a criança tem febre. Algo interessante é ensinar às crianças o distanciamento social, como brincar de aviãozinho sem encostar as mãos no coleguinha, ou ainda ensinar formas de manifestar afeto, na qual a criança toca o coração e fala que gosta da outra. Sei que não tem a ver com nossa cultura, mas vivemos um tempo de emergência, então teremos de viver outros hábitos. Valerá a pena se salvarmos vidas, e quem sabe as crianças levem um pouco de seriedade aos pais... Porque o que vemos de pais na praia ou em barzinhos. Quer dizer, só a escola é perigosa?

INCOMODA À SENHORA O FATO DE ESCOLAS ABRIREM DEPOIS DE BARES?

Me incomoda a educação não ser considerada um serviço essencial. É uma visão de que escola é lugar para deixar os filhos para serem cuidados. E a visão de não mandar o filho para a escola até ter vacina esquecendo o que isso significa para as crianças mais pobres em termos de alimentação, cuidado e aprendizagem. Dizer que precisa esperar a vacina é particularmente cruel com as crianças mais pobres.

COMO A PANDEMIA DEVE ACENTUAR A DESIGUALDADE SOCIAL? O QUE DEVE OCORRER NOS PRÓXIMOS ANOS NO BRASIL?

Há um brutal aumento da desigualdade social. Os pais das crianças mais pobres estão perdendo fonte de renda. Além disso, somos um país com alta defasagem idade-série. Ou seja, temos um jovem que deveria ter 11 anos no 6º ano, mas tem 15, por repetir muito. Se o jovem com 17 perde o ano por conta da pandemia, as chances de seu pai, que perdeu renda, pôr o filho para trabalhar são imensas. E, se lembrarmos que vivemos a quarta revolução industrial, na qual a inteligência artificial vem substituindo o trabalho humano, é uma situação muito ruim não concluir o Ensino Médio. As chances de não ter empregabilidade ou capacidade de empreender são enormes. Os jovens têm chance de serem uma geração perdida. Vivemos tempos tristes.

O QUE DEVE SER FEITO PARA AMENIZAR ESSE IMPACTO?

Saber o momento de voltar, e voltar de forma escalonada. Mas é preciso começar. Alguns secretários trabalham com a hipótese de, no Ensino Médio, só ir para a escola quem não tem equipamento em casa. Os professores ficam em casa transmitindo as aulas e, na escola, ficam diretor, diretor-adjunto e coordenador pedagógico organizando o ambiente. Mas todos os secretários estaduais preparam um retorno. Onde a coisa está pegando? Municípios. Nesse período de eleições municipais, dá medo a prefeitos de acontecer algo errado e a oposição acusá-los de não terem sido suficientemente cautelosos.

A SENHORA JÁ CITOU ALEMANHA, FRANÇA E PORTUGAL COMO EXEMPLOS. O QUE ELES FIZERAM E QUE PODERÍAMOS FAZER?

África do Sul também. Todos voltaram com protocolos. Não é que não teve nenhum novo caso. Teve, mas o que se faz: se aparece um caso em uma turma, a turma fica 14 dias em casa. Se aparece em mais de duas turmas, a escola fecha por 14 dias. Chegaram a falar que 70 escolas fecharam na França. Não. É o seguinte: tem 3,6 mil escolas na França e, ao longo do período, aparecerem casos de covid e 70 fecharam por 14 dias. Acho surpreendente a Espanha, onde já chegou a segunda onda e mantiveram as escolas abertas. Não sei se conseguirão manter isso. Eu preferiria ser mais assertiva, mas a realidade é que estamos tateando. Hoje, restaurantes estão abertos, sendo que os riscos são significamente maiores, já que as pessoas não usam máscara. Temos barzinhos e centros comerciais abertos. Só as escolas que não estão.

POR QUE A SENHORA ACHA QUE SE OPTOU POR ABRIR COMÉRCIOS E NÃO ESCOLAS?

Pela crise econômica, que tira emprego de muita gente. Também porque, nas escolas, o maior número de professores é da rede pública, ainda que escolas particulares precisem reabrir porque tem muito professor sendo demitido. Por fim, há uma visão dos sindicatos de que não é hora de se abrir.

O MINISTRO DA EDUCAÇÃO, MILTON RIBEIRO, DECLAROU QUE NÃO CABE AO MEC ORGANIZAR A VOLTA ÀS AULAS PORQUE QUEM DECIDE ISSO SÃO ESTADOS E MUNICÍPIOS. QUAL É O PAPEL DO MEC?

Ele está profundamente errado. O papel de um Ministério da Educação, mesmo em uma República Federativa, é coordenar a política educacional nacional. Se não, não faz sentido existir. O ministro disse isso, mas seu ministério preparou um protocolo biossanitário para apoiar as redes na volta às aulas. Só que, quando ele divulgou esse protocolo, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) já tinham espalhado protocolos para todo o mundo. Houve um protagonismo de ambas as entidades na resposta à covid, ocuparando um espaço não ocupado pelo MEC. O MEC fez muito pouco. O ministro está errado e mostrou que está interessado na continuidade de uma certa guerra ideológica que não ajuda em nada.

COMO A SENHORA CLASSIFICA A DECLARAÇÃO DO MINISTRO DE QUE A HOMOSSEXUALIDADE É UMA OPÇÃO E QUE OCORRE EM FAMÍLIAS DESAJUSTADAS?

Ele tem o direito de ter suas convicções religiosas. Mas elas ferem o que está na Constituição e os direitos humanos, uma causa muito querida à educação. E contrariam a ciência, que diz que ser homossexual não é uma escolha que a pessoa faz.

A SENHORA JÁ FOI MINISTRA. ATITUDES DOS ATUAIS MINISTROS, COMO ESSA, A CHOCAM?

Fui ministra em outro tempo. Vivemos uma era de conservadorismo na qual políticas públicas não são importantes. Tirando a política econômica, o resto parece não ser importante. Fico muito triste com isso tudo. Chego a pensar: puxa, o que fizeram com meu país.

O QUE ELEITORES DEVEM COBRAR NAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS?

Desconfie de qualquer pessoa que só fala da agenda de costumes ou de corrupção. Eu sou contra a corrupção, mas ser contra a corrupção é pré-condição, não realização. Pergunte o que o candidato quer fazer na educação, dentro da folga fiscal, para que as crianças aprendam mais, e não só construir prédios bonitos. Como vamos recuperar o estrago da pandemia na aprendizagem das crianças? É importante se preocupar com a primeira infância, porque muito do que acontece depois vem após ter recebido alimentação correta, estimulação do cérebro e creche para quem precisa. Também se deve ter um elo entre desenvolvimento econômico e educação: mesmo que o Ensino Médio seja responsabilidade estadual, tem de buscar alternativas de renda para a juventude.

NO ÚLTIMO ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO BÁSICA (IDEB), O BRASIL VIU UMA MELHORA EM TODAS AS ETAPAS, COM UM SALTO MAIOR NO ENSINO MÉDIO. O QUE EXPLICA ISSO?

É resultado de uma longa jornada. Começou quando decidimos ter um Ensino Fundamental com um ano a mais e quando começamos a avaliar a educação em todas as escolas no 5º e 9º ano. Quando, mais tarde, criamos uma cultura de monitoramento de aprendizagem em boa parte dos municípios e Estados, onde se fazem provas regulares a cada dois meses para ver se há evolução. E, também, quando você cria uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e define, com clareza, o que esperar que crianças e adolescentes aprendam. Ao fazermos a prova do Ideb em 2019, ainda não se tinha a Base traduzida em currículos estaduais para o Ensino Médio, mas o esforço de discutir o que precisa ser ensinado e a formação aos professores ajudou. Educação é política de Estado, não de governo. Engraçado que, na ausência do MEC, os secretários de Educação do Brasil inteiro têm se reunido o tempo todo. E vem sendo um trabalho bastante interessante.

ESPECIALISTAS ENTREVISTADOS POR ZERO HORA CITARAM ALGUMAS FORMAS DE MANTER OS AVANÇOS DO IDEB, COMO AUMENTAR O SALÁRIO DE PROFESSORES, MODERNIZAR O CURRÍCULO, MANTER UMA POLÍTICA EDUCACIONAL INDEPENDENTEMENTE DOS GOVERNOS, FORMAR PROFESSORES E MELHORAR A INFRAESTRUTURA DAS ESCOLAS. A SENHORA CONCORDA COM ESSES PONTOS?

Não tem bala de prata na educação, mas algumas coisas ajudam bastante. Melhorar o salário de professores é importante, porque precisa atrair os melhores alunos de Ensino Médio para a carreira. Evidentemente que salário não é tudo, mas, se o salário está em um patamar muito baixo, ainda que o jovem seja um idealista, há um limite. A formação de professores é outro ponto importante, porque universidades infelizmente formam professores não para a profissão. Não há nenhum diálogo entre teoria e prática. Os próprios concursos públicos reproduzem defeitos: há aula prática para ser professor de universidade federal, mas não para ser professor de criança e adolescente, que é muito mais complicado. Também é preciso ensinar o professor e o diretor a trabalharem com dados. Por fim, política de Estado é algo sagrado: não é que um prefeito ou governador novo não possa mudar alguma coisa, mas deve construir o que começou a ser montado lá atrás.

O PISA MOSTRA QUE AS ESCOLAS PARTICULARES BRASILEIRAS SÃO PIORES DO QUE AS ESCOLAS PÚBLICAS EUROPEIAS. O QUE EXPLICA O FRACO DESEMPENHO DAS INSTITUIÇÕES ONDE ESTUDA A ELITE DO BRASIL?

Temos uma desigualdade educacional profunda, mas as escolas particulares frequentadas pela elite se saíram melhor nesse Ideb do que no anterior. Só que, para escolas públicas e privadas, é a mesma baixa atratividade da carreira de professor e a mesma formação inadequada recebida na universidade. O livro A Grande Gripe, de John Barry, mostra que faculdades de Medicina nos EUA e em boa parte do mundo eram muito teóricas e facílimas de entrar porque não havia prestígio na profissão no século 19. Não se exigia conhecimento de biologia e não havia hospitais universitários. Em outros termos, não havia diálogo entre teoria e prática. Foi quando a Johns Hopkins foi criada que surgiu a ideia de um hospital universitário que conectasse à prática. A faculdade não preparava para a profissão, que não tinha prestígio.

É O CASO DAS LICENCIATURAS HOJE?

Sim. Não há preparação para a prática. O Chile, há sete anos, começou a fazer a mesma transformação e, não por acaso, é o país da América Latina com as melhores notas. Desde o primeiro ano da faculdade você está no chão de uma escola - não só para estágio, mas também assistindo à aula de professores. A grande transformação que houve na Finlândia começou por tornar a formação de professores profissionalizante, em guerra com universidades finlandesas. Teve conflitos, foi um caos há 40 anos. Para ser professor lá, não basta ter graduação, tem de ter mestrado profissional extremamente ligado à prática. Você não aprende a ser médico tendo palestras sobre Medicina, tem de estar no hospital universitário desde o primeiro ano. Mas a gente acha que professor não precisa ser conectado à prática...

O GOVERNO FEDERAL PLANEJA VOLTAR A TAXAR LIVROS, SOB O ARGUMENTO DE QUE É UM PRODUTO DAS ELITES. O BRASILEIRO LÊ EM MÉDIA 5,5 LIVROS POR ANO. QUE EFEITOS A TAXAÇÃO PODE TER NA EDUCAÇÃO?

Somos ainda um país de não leitores. O preço do livro é caro porque as tiragens não são grandes. A gente precisa sair desse ciclo vicioso. A própria maneira como trabalhamos a leitura na escola leva a não sermos um país de leitores. A Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTE) elaborou, em 2002, uma pesquisa mostrando que 60% dos professores não tinham hábito de ler. Faz tempo, mas dá um indicativo de que somos um país de elites não leitoras. A conclusão do Paulo Guedes é o contrário: "A gente lê pouco, então vamos tornar o livro ainda mais caro porque é um produto das elites". Não! Vamos criar uma política de fomento à leitura, que comece na escola - mas não fique só na escola. É fundamental ter bibliotecas públicas em todos os municípios. Sou supercontra taxar os livros, só vai encarecê-los e tornar o Brasil menos leitor. Morei no Exterior várias vezes. O que me impressionou quando fui com quatro filhos para os EUA foi que, na matrícula da escola pública, davam a carteirinha da biblioteca municipal.

COMO A SENHORA VÊ A NOMEAÇÃO, EM DIVERSAS UNIVERSIDADES FEDERAIS BRASILEIRAS, DE REITORES QUE NÃO FORAM OS ESCOLHIDOS POR VOTAÇÃO PELA PRÓPRIA COMUNIDADE ACADÊMICA?

O ideal e a tradição é nomear o mais votado. Não acho errado nomear o terceiro colocado, mas tem que ver quantos votos teve a pessoa. Já vi governador de São Paulo escolher o segundo colocado em uma lista tríplice, mas que teve uma votação importante. O que falamos agora é de uma votação completamente inexpressiva para um terceiro colocado.

A SENHORA FOI SONDADA PARA SER MINISTRA DA EDUCAÇÃO, MAS DECIDIU SEGUIR NA FGV E PRESTANDO MENTORIA EM EDUCAÇÃO. ESTÁ FELIZ?

Muito. Não foi a primeira vez que fui sondada para ser ministra, não só nesse governo. Nessa sondagem, eu logo de pronto falei que não. Estou muito contente com minha etapa de vida. Mesmo que eu tivesse afinidades com esse governo, e não tenho, acho que ajudo mais o Brasil onde estou agora do que como ministra.

MARCEL HARTMANN


03 DE OUTUBRO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

A HIPÓTESE DAS AVÓS

Se a vida na Terra tem algum sentido é o crescei e multiplicai-vos. A maioria dos vertebrados morre quando o vigor reprodutivo chega ao fim. Seres humanos são uma das raras exceções.

Sob a perspectiva evolucionista, qual seria a explicação para que as avós, mulheres já estéreis que pouco contribuem para a produção de alimentos, permaneçam vivas e com a cognição preservada?

Um estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) propõe uma explicação genética para esse fenômeno. Em 1998, um trabalho de campo havia mostrado que, no grupo Hazda de caçadores-coletores da Tanzânia, sobreviviam mais crianças nas famílias com avós que ajudavam a alimentá-los e lhes transmitiam tradições culturais e ensinamentos ecológicos. Graças a essa atuação, seus genes levariam vantagem na passagem para as novas gerações, teoria que ficou conhecida como "a hipótese das avós".

A deterioração da capacidade cognitiva associada ao envelhecimento, entretanto, compromete essas vantagens e se torna onerosa aos membros do grupo. No estudo da PNAS, o grupo de Aji Varki e Pascoal Gagneux, da Universidade da Califórnia, avaliou a contribuição de um gene (CD33) envolvido no controle das respostas inflamatória e imunológica às infecções e na doença de Alzheimer, enfermidade característica da fase pós-reprodutiva. Pesquisas anteriores haviam documentado que CD33 tem duas variantes (alelos), uma das quais predispõem à doença, enquanto a outra protege contra a proteína que se acumula no cérebro dos pacientes com Alzheimer.

Para elucidar o papel de CD33, o grupo comparou essas duas variantes com as dos chimpanzés e dos bonobos, nossos parentes mais chegados. Verificaram que seres humanos e chimpanzés apresentam níveis semelhantes da variante deletéria, enquanto a protetora atinge níveis quatro vezes mais elevados entre nós. Esse achado sugere que os chimpanzés, primatas em que a morte costuma coincidir com o fim do período de fertilidade, nunca viveram o suficiente para usufruir as vantagens da variante protetora. De fato, entre eles não são encontrados os transtornos cognitivos típicos do Alzheimer.

Pesquisando em bancos de dados do Projeto Genoma, os autores encontraram a variante protetora em etnias africanas, americanas, europeias e asiáticas. CD33 protetora, no entanto, não está presente em todas as pessoas. Conhecê-la em profundidade pode levar a medicamentos que mimetizam seus efeitos.

De qualquer forma, é muito interessante descobrir que nossa espécie selecionou uma variante para nos proteger de uma doença que só se instalará na oitava ou nona década de vida, fase distante da seleção reprodutiva. Esse mecanismo seletivo operaria no sentido de maximizar as contribuições de indivíduos em idade pós-reprodutiva para a sobrevivência dos mais novos.

Os autores concluem que "as avós são tão importantes, que nós evoluímos genes para proteger suas mentes".

DRAUZIO VARELLA

03 DE OUTUBRO DE 2020
BRUNA LOMBARDI

O DESPERTAR DA PRIMAVERA 

Chega a primavera e estamos em crise. Toda crise traz momentos de reflexão. A gente se questiona e procura respostas. Estamos vivenciando mudanças e precisamos saber como mudar. Vivemos um isolamento, cheios de estresse, medo e ansiedade diante do desconhecido.

E como administrar essas emoções? Pensamentos negativos nos atingem, tudo é incerteza. O que vai acontecer com os nossos sonhos, nossas paixões?

O que está acontecendo dentro de nós? Como organizar esse turbilhão de ideias e emoções que mexem com o nosso espírito? Uma sensação de solidão invade os nossos dias.

Precisamos compreender o que sentimos, mas os sentimentos parecem estagnados. O que fazer para desatar esses nós e buscar mais equilíbrio emocional e espiritual nessa nova estação?

Interromper a conversa negativa consigo mesmo é um dos passos mais importantes. Quanto mais falamos mal de nós, da situação em que estamos, mais nos enfraquecemos e fortalecemos as coisas que não queremos.

É bom ter certeza daquilo que a gente quer e não do que achamos que a sociedade espera de nós.

Um exercício para testar a nossa força de vontade é detectar maus hábitos. A gente sempre percebe a indulgência e tudo o que acreditamos ser uma recompensa. Reconhece a falta de disciplina, a procrastinação e as desculpas que inventamos. A gente quer mudar, mas mudar requer uma nova atitude.

Não adianta fugir dos problemas, porque eles sempre vão junto a gente. A única saída é enfrentar, resolver e superar. Mesmo se as tentativas não dão certo, não existe fracasso, são nossos pequenos passos na etapa de evolução.

Sucesso não é um lugar de chegada, é o nosso estado de espírito durante o percurso. Saber reagir ao que acontece, é determinante na jornada. Sempre existem alternativas, opções e escolhas. Novos caminhos e novas descobertas.

Ajuda muito ter alguém com quem conversar de verdade. Alguém que te quer bem e em quem você pode confiar.

Ah, e não se compare com os outros, nem julgue as pessoas. Aliás, não julgue você mesmo. Nada disso é construtivo, pelo contrário, só vai minar a sua auto estima.

Evite o jogo da culpa. Culpar alguém do que acontece com a gente não ajuda em nada. Mesmo que tenham te machucado, desiludido, decepcionado, a responsabilidade pelo que você se sente é sempre sua.

Desapego é necessário e a gente sabe que pra mudar precisamos abrir mão de algumas coisas que temos e somos.

Vivemos em constante fluxo, nada é estático, tudo está em movimento, tudo muda o tempo todo. Heráclito, um pensador grego, dizia que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, pois da segunda vez nós já mudamos e as aguas do rio também.

A serenidade vem de saber que tudo o que acontece é necessário e chega na hora certa. Esse é o despertar de um novo ciclo, nova estação. Um momento propício para reavaliar o que queremos ser na vida.

Preste atenção no momento presente, siga sua intuição, escute o seu coração. Toda crise nos revela e nos renova. Uma feliz primavera para você.

BRUNA LOMBARDI

03 DE OUTUBRO DE 2020
J.J. CAMARGO

JUNTANDO OS CACOS 

"Eu preciso de um médico que trate a alma das pessoas! Podes me indicar alguém?"

Esta frase foi colocada logo depois do "em que posso te ajudar" quase sempre acrescido do recomendável "eu preciso saber um pouco mais, então me conte o que só contarias ao teu melhor amigo!".

Essa consulta pode ter acontecido ou, simplesmente imaginada, como introdução para discutir uma situação comum nestes tempos de rabugice coletiva, com todo mundo exasperado pelo demora do fim dessa pandemia, enquanto alguns ironizam que o pico da doença está previsto para o final de 2021, ou não. O certo é que esta experiência insólita de pânico generalizado mexeu com as pessoas de uma maneira inusitada, constrangendo os pretensos poderosos com a democratização do medo, esse sentimento que melhor define a nossa vulnerabilidade.

O confinamento desde cedo começou a cobrar seu preço, e a companhia sem tréguas dos cônjuges, privados até das novidades trazidas da rua, remexeu em mágoas represadas e estimulou um previsível acerto de contas. Muitos casamentos ruíram porque um acabou dizendo "o que precisava ser dito", e o outro, sempre tolerante, agora como um animal ferido e enjaulado, retribuiu.

Alguns, sem ânimo para dissecção de relações eternizadas pela mesmice, se deram conta do quanto estavam desorganizados e, com a morte sempre rondando por perto, ficaram chocados com a consciência de não estarem prontos.

Esses cenários resumidos aqui foram tantas vezes levados pelos pacientes aos consultórios dos médicos antigos, esses antiquados que consideram que ouvir é parte essencial da relação entre duas pessoas, mesmo quando a doença de uma delas não provoca nenhuma dor física.

A expressão de extremo descompasso afetivo justifica a demanda por divórcios, e a insegurança em relação a um futuro sem limites estabelecidos tem multiplicado o trabalho dos cartórios onde desaguam os processos dos requerentes de testamentos, pelos tipos que recém descobriram a finitude, sempre mantida distante, como se fosse uma improbabilidade.

Como as glamourosas estratégias de comunicação virtual já esgotaram seus limites de competência, ninguém mais aguenta os abraços virtuais, nem as telas do computador cheias de carinhas amorfas, olhando para lugar nenhum, e sempre alguém perguntando: "Vocês me ouvem?".

É certo que sairemos dessa pandemia mais espertos em comunicação remota, mas o retorno à vida que consideramos de fato normal vai nos encontrar muito diferentes. Quem dera, melhores, apesar de completa incerteza. Para não deixar a paciente do início desta crônica sem resposta, digo que não tenho ideia de para quem encaminhá-la, mas que pode me ligar se a solidão parecer insuportável.

Sei que vai ser difícil assimilar tantas perdas, mas confio que passar por uma experiência tão surreal também é viver. E com uma intensidade insuspeitada no nosso antigo modelo de convívio despreocupado. Historicamente, as tragédias são transformadoras, e pode ser que no fim de tudo cheguemos à conclusão de que as nossas vidas já estavam a exigir uma mudança, desde antes da doença aparecer.

Talvez o mais chocante acabe sendo o quanto demoramos a perceber esta necessidade. Então, vamos juntar os cacos e recomeçar.

Por absoluta falta de alternativas.

J.J. CAMARGO