08 DE JUNHO DE 2020
DAVID COIMBRA
A profissão que todos querem ter
A verdade é que todo mundo queria ser jornalista. Isso se afirma na quarentena. As pessoas fazem lives a mancheias, entrevistam-se umas às outras, promovem debates e postam comentários nas redes sociais. Elas têm intimidade com a câmera, gostam de aparecer, gostam de expor suas vidas e seus pensamentos.
É admirável a naturalidade que a maioria tem com os meios eletrônicos. Muitos jornalistas profissionais não alcançam tamanha destreza, sobretudo os jornalistas de jornal. Lembro do Boró, o grande Mauro Toralles, que durante 35 anos foi editor assistente do Esporte da Zero Hora.
O Boró morreu num sábado do ano passado. Era uma noite fria, e ele fez um pedido prosaico para sua mulher, a Helena: queria tomar um prato de mingau. Ela lhe fez a vontade, preparou o mingau com açúcar e com afeto, botou o prato na frente dele e advertiu que estava quente. O Boró sorveu uma colherada e apagou, como se o disjuntor tivesse caído. Morreu de uma morte discreta, suave e boa, como discreto, suave e bom ele sempre foi.
Contei uma história a respeito dessas características do velho Boró, dois dias depois de sua morte, e quem o conhecia veio me dizer: ele era bem assim. É que, todas as tardes, a TV ia gravar chamadas na Redação, para contar o que o jornal traria no dia seguinte. Às vezes, o repórter da TV chamava um editor para falar das matérias. O Boró, só de pensar que poderia ser chamado, se horrorizava. Não é que sentisse medo da TV; sentia pânico. Assim, quando a câmera apontava na porta da Redação, o Boró desaparecia. Não sei como ele fazia isso, nunca ninguém o via sair, ele simplesmente sumia, como se estivesse sob o manto da invisibilidade de Chuck e Nancy.
A câmera da TV chegava e você podia procurar o Boró, que não o encontrava. Um dia, um único dia, uma repórter conseguiu capturá-lo. Talvez ele estivesse distraído e não teve tempo para escapulir. E lá se viu o Boró, diante daquele microfone. Fiquei observando a cena. O Boró suava, retesado na cadeira, abria a boca e as palavras não saíam. A repórter insistia nas perguntas, o Boró tinha de falar. Então, sua voz veio num fio, apertada, como se o Boró estivesse fazendo muita força. Dava pena. Fui lá, salvá-lo, antes que desmaiasse.
Tanta timidez e, mesmo assim, o Boró foi um dos melhores jornalistas que conheci. Inteligente, sagaz e culto como poucos. Mas era um homem recatado. Só contava o que fazia e dizia o que pensava aos íntimos. Como ele viveria no mundo de hoje, em que todos se filmam e tudo filmam e acerca de tudo falam? É essa a paixão deste século, essa ânsia de se mostrar e de se expressar. Nunca, em tempo algum, a vida e as opiniões do homem comum ficaram tão manifestas, tão à disposição do exame alheio.
Antes, quando você conhecia alguém, perguntava: "É gremista ou colorado?" Era o máximo que se sabia das preferências ou das ideias do outro. Hoje, você sabe se a pessoa é a favor ou contra as privatizações. Porque todos querem publicar o que pensam. Porque todos acham importante o que pensam. Éramos um país com 100 milhões de técnicos de futebol. Somos um país com 200 milhões de jornalistas.
DAVID COIMBRA
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