segunda-feira, 9 de dezembro de 2013



09 de dezembro de 2013 | N° 17639 
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Um planeta estranho

A leitora Doris W. revela especial curiosidade sobre uma expressão que usei na crônica de segunda passada. Escrevi aqui que achava o lado de lá do Muro, quando andei estudando na Alemanha, sombriamente fascinante.

Talvez seja mais fácil entender isso, Doris, se disser que na época só havia duas maneiras de transpor o limite entre dois universos, ou seja, entre a mesma Berlim, uma cidade dividida contra si mesma A primeira era pelo Checkpoint Charlie, controlado pelos americanos. Na ida, tudo bem: deixavam passar um camelo se ele quisesse conhecer um país socialista. Na volta é que eram elas. Os Vopos (a Polícia do Povo, da parte oriental) entravam nos ônibus e vistoriavam cada centímetro quadrado. 

Com essa infinita volúpia, tão própria da Síndrome da Pequena Autoridade, esquadrinhavam as poltronas e o corredor, logo a bagagem de mão e os passaportes. Enquanto isso, lá fora, enormes cães latiam ensandecidos, farejando a carroceria, e grandes espelhos sobre rolimãs mergulhavam nos desvãos do chassis. Só aí, verificado que ninguém proibido ia fugir do paraíso, éramos liberados.

O segundo modo de ir a Berlim Oriental era por uma solitária linha de metrô à margem de qualquer conceito de calendário. Seu roteiro incluía assombrações como a estação de Französichstrasse, mantida exatamente como era no dia 13 de agosto de 1961, com todos os anúncios e imagens fantasmagóricos de uma época extinta. Sim, Doris, viajar no tempo era possível.

Aí você entrava em lentas filas, primeiro para ser revistado e logo para trocar todo o seu dinheiro por notas anêmicas e moedas de alumínio. Só depois ingressava realmente no lado B de uma cidade bela e dilacerada, com museus incríveis, como o Pergamon, universidades tipo a Humboldt e teatros ao estilo da Ópera (que conheci ainda transformada em um requintado restaurante, com a média de três garçons por um cliente).

A arquitetura de inspiração soviética poluía a paisagem a dois passos da centralíssima Alexanderplatz. O trânsito nas largas avenidas era mínimo, quase que entregue aos pequenos Trabants. Certas quadras exibiam a flor perplexa dos bombardeios da Segunda Guerra. 

Viam-se casamatas e bunkers em alguns quarteirões, ali sobrados possivelmente à espera da Terceira. Não era fácil falar com as pessoas nas ruas: elas se retraíam, desconfiadas. E havia filas gigantescas, a maior das quais para comprar sorvete.

Era bem assim, Doris. Voltávamos então para o lado de cá, para o Ocidente, e nos batia uma vontade súbita de coisas simples, como provar um branco do Reno.

Isso mesmo, Doris. Este já foi um planeta estranho. Ou quem sabe ainda seja?

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