sábado, 10 de maio de 2008



11 de maio de 2008
| N° 15598 - Luiz Fernando Verissimo


Tétrica aritmética

Num elogio ao general Grant, comandante do exército do Norte na Guerra Civil americana, o presidente Abraham Lincoln disse que Grant era bom porque estava disposto a "enfrentar a aritmética". Além de ser um reconhecido estrategista, não hesitava em ordenar ataques frontais ao inimigo sabendo que a contagem de baixas seria horrorosa.

A tétrica aritmética da Guerra Civil americana só seria superada pela Grande Guerra de 1914, quando milhares de vidas podiam ser sacrificadas num só dia por nada - como na batalha do Somme, em que 50 mil soldados ingleses morreram avançando contra fogo alemão sem que um metro de terreno fosse conquistado.

Na verdade, mais de três milhões de seres humanos foram sacrificados nos três anos da Primeira Guerra Mundial sem que a frente de batalha se movesse, para um lado ou para o outro, mais de algumas milhas.

Nos dois lados havia generais dispostos a enfrentar a aritmética. Durante três anos, generais, governantes, políticos, intelectuais, imprensa e povo dos dois lados conviveram, patrioticamente, com a aritmética. Justificando-a ou - o mais cômodo, pelo menos para quem não estava numa trincheira - ignorando-a.

A Guerra de 14 foi um exemplo extremo de estupidez militar e civil e até hoje historiadores discutem as causas reais de tamanha insensatez coletiva. Mas ela teve seus justificadores. Era a Europa liberal resistindo ao militarismo alemão.

A Guerra Civil americana também tinha tido, pelo menos na superfície, a justificativa nobre da abolição da escravatura. A aritmética do terror aéreo que a Alemanha lançou na outra grande guerra, a Segundona, depois de ensaiá-lo na Espanha, teve por trás o sonho pan-germânico de Hitler, que só virou coisa de louco porque ele perdeu.

A aritmética dos campos de extermínio nazistas era justificada pela purificação da raça ariana. A aritmética dos bombardeios gratuitos de Dresden e de Hiroshima e Nagasaki se justificava como castigo. A aritmética dos gulags e dos expurgos stalinistas se justificava pelo ideal comunista.

A aritmética do ônibus destroçado pelo suicida palestino numa rua de Tel Aviv se justifica por uma causa, a aritmética da represália israelense se justifica por outra.

E há tantas maneiras de ignorar a aritmética como há de defendê-la, ou exaltá-la como uma virtude militar, como Lincoln fez com Grant. Uma questão nas atuais campanhas para a escolha do futuro candidato democrata à presidência dos Estados Unidos é como cada um enfrentará a aritmética das baixas crescentes no Iraque, já que o candidato republicano a justifica sem remorso.

A justificativa da Segunda Guerra Mundial seria inatacável, ou menos discutível do que as outras. Afinal, as democracias aliadas tinham ido à luta contra a ameaça fascista depois de tentarem inutilmente apaziguar Hitler e conte-lo com diplomacia, se houve uma guerra necessária e justa foi esta.

Agora saiu um livro nos Estados Unidos, escrito pelo romancista Nicholson Baker, que questiona essa idéia da "boa guerra".

Baker não lamenta o resultado da guerra nem defende uma ideologia, apenas usa um estilo jornalístico, coletando fatos, recortes, cenas e documentos da época, para mostrar a responsabilidade parcial do lado "bom" nas causas do conflito e as atrocidades de lado a lado, e para revisar o quadro de figurantes do drama e incluir gente como Winston Churchill - outro que não tinha medo da aritmética - entre os bandidos.

Baker sempre foi um escritor excêntrico. Não se sabe se tem razão em desmistificar assim a última guerra aceitável da História ou se só está querendo ser diferente. Ou se simplesmente preferiu não ignorar a tétrica aritmética.

Nenhum comentário: