sexta-feira, 30 de setembro de 2016



30 de setembro de 2016 | N° 18648 
CLÁUDIA LAITANO

Clássicos e românticos

Nada, às vezes nem mesmo uma morte na família, é tão disruptivo quanto uma separação – evento que afeta não apenas a estabilidade emocional, mas o bolso, o teto e quase todos os outros aspectos práticos e subjetivos das vidas de duas pessoas. Depois dos filhos e de outros diretamente envolvidos, casais próximos costumam ser os mais impactados. Quando um casal se separa, é comum medir o próprio casamento em relação ao outro que terminou – e, em alguns casos, se perguntar o que, no fim das contas, distingue uma relação em crise de outra que já acabou.

A separação de casais famosos tem um efeito desestabilizador parecido. Mais ainda se o ex-casal inspirava algum tipo de idealização romântica. “Acabou o amor”, mancheteou um jornal popular na semana passada, resumindo em uma única frase uma possível causa para a separação de Angelina Jolie e Brad Pitt (o fim do amor) e a reação mais comum dos fãs diante da notícia: se não funcionou para eles, não funciona para mais ninguém.

Um livro do qual eu gosto muito, Zen e a arte da manutenção de motocicletas (1974), do autor americano Robert M. Pirsig, defende que existem basicamente dois modos de encarar o mundo. O perfil “clássico” busca entender a mecânica das coisas – as estruturas que fazem, por exemplo, o motor de uma motocicleta funcionar. O perfil “romântico” seria aquele influenciado mais fortemente pelas aparências e pelas emoções – como a sensação de liberdade que um motociclista experimenta pilotando em uma estrada vazia.

O amor é aquele terreno em que até o mais clássico dos temperamentos se deixa levar por emoções e fantasias – porque, obviamente, é a ilusão romântica que torna as paixões possíveis. Mas, assim como quem observa uma motocicleta estacionada sabe muito pouco, ou nada, sobre o estado do seu motor, quem olha de fora um casal (famoso ou não) nem sempre percebe, à primeira vista, o que faz aquele relacionamento funcionar ou não. Ou seja: pelo menos em relação aos casamentos alheios, convém ser um pouco menos romântico com o amor.



30 de setembro de 2016 | N° 18648
ARTIGO - MARCELO SCHENK DUQUE*

O RISCO DO FORO PRIVILEGIADO

O aumento do número de políticos que passam a figurar na condição de réus em processos de natureza criminal, no âmbito de operações como a Lava-Jato, coloca a questão: em que medida a organização judiciária brasileira é capaz de fornecer respostas con- fiáveis e efetivas à população? Como se sabe, a Constituição Federal atribui exclusivamente ao STF a competência para processar e julgar, entre outras autoridades, políticos com mandato no Congresso Nacional. Trata-se de um problema de difícil equacionamento.

Ao contrário das instâncias ordinárias, o STF não é vocacionado para essa função. A uma, porque é encarregado, precipuamente, da guarda da Constituição e não do processamento de ações que demandam farta dilação probatória e diligências típicas da esfera penal; a duas, porque é composto por apenas 11 ministros, o que revela a incompatibilidade de recursos materiais, frente a essa complexa tarefa. Essa é a razão pela qual os julgamentos proferidos pela Justiça de primeiro grau nesse tipo de ação possuem uma velocidade incomparavelmente superior à imprimida pelo STF. O resultado é uma sensação permanente de impunidade, pela letargia dos julgamentos, que tendem a ser atingidos pela prescrição.

Esse quadro revela a inadequação do foro privilegiado à atual realidade brasileira, quando a corrupção atinge níveis avassaladores. Trata-se, a toda evidência, de uma regra constitucional equivocada, que necessita de urgente reforma. 

O problema é que muitos que se beneficiam da lentidão do STF na condução de ações penais são parte da solução, na medida em que o fim do foro privilegiado depende de um complexo processo de emenda constitucional, que tramita justamente no Congresso Nacional, palco de atuação de diversos partidos implicados em escândalos de corrupção. Sem uma pressão popular ordeira, determinada e visível, dificilmente Brasília irá corrigir essa deturpação. E o risco, mais uma vez, é de a corrupção triunfar sobre a moralidade, a par de todo esforço até aqui expendido. Algo de que precisamos, de fato, é mais Moro e menos foro.

*Professor universitário, doutor em Direito Constitucional


30 de setembro de 2016 | N° 18648 
DAVID COIMBRA

Os bandidos não aguentam mais violência

Finalmente alguém tomou uma atitude para resolver o problema de segurança no Rio Grande do Sul.

Para meu imenso alívio, no final da tarde de ontem li a notícia alvissareira sobre a nova facção criminosa que, preocupada com os níveis da criminalidade no Estado, decidiu dar um basta na situação. Os bandidos lançaram um manifesto defendendo “limites para a violência”.

Estaquei, entre perplexo e encantado. Minha coluna já estava pronta, liguei para o jornal e pedi para que a segurassem. Parem as máquinas!

Um valor mais alto se alevanta, como dizia Camões.

Porque era disso que necessitávamos. Com o Estado, a população não pode contar. Em nenhum nível. Nem federal, nem estadual, nem municipal. Já está provado que os governantes brasileiros são incompetentes e inapetentes nessa questão. O que o cidadão poderia fazer? Criar milícias? Isso é que não, o gaúcho é um povo ordeiro. Só uma organização poderosa e especializada no assunto poderia fazer algo. E... presto! Os bandidos se comoveram com o problema.

Li com grande alegria o manifesto. Em primeiro lugar, há que se elogiar a qualidade poética do texto. O título é:

“Compromisso com o lado certo da vida errada”.

Quem foi que criou essa frase? Contratem esse homem para assessorar o Temer, pelo amor de Deus!

No texto, os criminosos se disseram “incomodados” com “práticas extremas”, como “esquartejamento de vítimas ou morte de crianças e mulheres”. Eles dizem que essas ocorrências “ultrapassam o que seria considerado como aceitável”.

E é verdade. Vocês já viram como é desagradável um esquartejamento? Totalmente fora dos limites do aceitável.

Os bandidos dão sequência ao manifesto informando que “a partir da data de hoje está formada uma facção com respeito a todos”.

Era do que precisávamos: res-pei-to! Tão cientes eles estão dessa nossa necessidade, que finalizaram o texto com uma afirmação definitiva:

“Portanto, o surgimento deste grupo é para o bem de todos, para o bem da sociedade, pois é para a sociedade que devemos o nosso maior respeito”.

Eis! EIS! A preocupação com o social. Com o bem de todos. Até que enfim surge uma entidade que respeita a sociedade. Porque é muito fácil roubar à sorrelfa: você vai lá, monta um partido ou entra em algum que já existe, elege-se para alguma coisa e negocia o seu voto para um projeto, para uma medida provisória, em uma CPI. E, se você se eleger para o Executivo, aí sim! Você não apenas abastece a sua conta bancária como sai por aí dizendo que se preocupa com os pobres.

Mas se preocupa mesmo? Claro que não! Os pobres estão morrendo de assalto, de bala perdida, de bala achada. Até que... Até que alguém que sabe o que fazer decide fazer algo. Os bandidos. O meu, o seu, os nossos bandidos se reuniram e gritaram, com maiúsculas, CHEGA!

Deus seja louvado. Estamos salvos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016


29 de setembro de 2016 | N° 18647 
CARLOS GERBASE

OS TIRANOSSAUROS

Metáforas são perigosas, ainda mais nas páginas de um jornal. Há duas semanas, contei a história de um lagarto que, acuado, levantou-se nas patas traseiras e parecia prestes a atacar. No final da coluna, afirmei que isso acontece com animais em geral, e que o ser humano é um animal. Cabe, portanto, à sociedade tentar evitar que indivíduos fiquem acuados e partam para a violência. 

A reação de alguns leitores foi bastante crítica e dois argumentos básicos surgiram. O primeiro: homens não são animais, muito menos répteis, porque possuem livre-arbítrio. O segundo: a sociedade – em sua maioria formada por pessoas “de bem” e trabalhadoras – não tem responsabilidade alguma sobre um contexto econômico e cultural que gera exclusão.

Pois bem, vou defender minha metáfora. Atenção, companheiros de espécie: somos animais, sim. Nosso comportamento não pode ser explicado apenas pelas ciências sociais. Somos produtos da história e também da nossa (muito mais) longa evolução biológica. Temos livre-arbítrio? Sim, mas há controvérsias sobre o quanto ele é realmente livre frente a nossos instintos. 

A neurociência é bastante assustadora em algumas de suas descobertas. A racionalidade não comanda o mundo como um monarca absoluto, e é preciso ler Darwin depois de ler Descartes. Quem desconhece esses dados fundamentais da natureza humana exibe uma ignorância jurássica.

Quanto à inocência das “pessoas de bem” – argumento neoliberal até a medula, que pede ao governo que tire de circulação (de preferência com um tiro) todos os répteis que circulam pelas ruas –, aí está um debate político de primeira grandeza. Tiranossauros são predadores irrecuperáveis e vivem à procura de vítimas para o jantar. Há os que acreditam que devemos prender todos e jogá-los numa jaula (mas seria melhor matá-los). 

E há os que acreditam em ações que combatam os tiranossauros e, ao mesmo tempo, evitem que pequenos lagartos, acuados, pensem em fazer besteira e sigam os caminhos dos primos gigantescos. Sou do segundo time. Tenho medo dos tiranossauros e sei que eles devoram sem pensar o que estiver pela frente, inclusive lagartos menores. Mas, resumindo, na selva em que vivemos, crendo ou não em livre-arbítrio, convém não aumentar o número de predadores.



29 de setembro de 2016 | N° 18647 
DAVID COIMBRA

“Eles não eram ninguém no ano mil”

Terei uma agenda. Está decidido. Você dirá: “Mas outubro já está ali. Agenda, a esta altura do ano, é desperdício”. Não importa, o fato é que necessito desesperadamente de agenda.

Terei uma agenda.

Só com uma agenda conseguirei dar conta de todos os compromissos. Uma agenda organiza a vida da pessoa. A agenda, não por acaso, é substantivo feminino. Não existe “o agendo”. Porque a agenda é como uma mulher: está sempre dizendo a você o que fazer. A diferença é que com a agenda você não se irrita. Se você se incomodar com ela, você a coloca na gaveta e vai ver o jogo com os amigos.

Mesmo assim, você tem compromisso com a agenda. O que está escrito lá, você faz. Ou tenta fazer.

E não me venha com agendas eletrônicas, aplicativos do celular, tabela Excel. Quero uma agenda de verdade, gordinha, com capa de couro.

Tive agendas assim, admito. Começava a anotar meus compromissos em janeiro e no meio do mês já estava usando as páginas para escrever outras coisas e acabava me esquecendo de consultá-la todas as manhãs e logo a agenda se perdia entre blocos de reportagem, revistas lidas e livros para ler. Algumas sumiam para sempre.

Mas, agora há pouco, quando estive no Brasil, fui almoçar com a minha mãe, abri um armário para procurar algo e encontrei uma delas, uma velha agenda. Não sei como foi parar lá. Era do começo dos anos 1990. Comecei a folheá-la. Seguindo o destino de todas as agendas que tive, naquela estavam registrados os parcos lembretes para janeiro e, no resto, anotações esparsas, rabiscos sem sentido e até um jogo da forca que ganhei colocando a palavra “mnemônico”.

Nada digno de despertar nostalgia. Porém, numa folha exatamente de fins de setembro, como hoje, anotei a frase que tantos anos depois me fez parar para pensar. Era a fala de um dos personagens de Em busca do tempo perdido, de Proust. O sujeito era um esnobe e, para demonstrar seu desprezo por certa família de Paris, disse:

– Eles não eram ninguém no ano mil.

Foi o que anotei. “Eles não eram ninguém no ano mil”.

Que sentença espetacular. E que espetacular seria poder dizer isso, penso eu, daqui da minha reles condição plebeia do subúrbio porto-alegrense.

Por que escrevi essa frase naquela antiga agenda? Não havia nada mais que me indicasse a razão, mas consegui lembrar. Estava dizendo para mim mesmo que tinha de completar a leitura de Em busca do tempo perdido. São sete volumes, os quatro primeiros traduzidos por Mario Quintana. Não me assusto com livro grande, já li maiores, mas esse, confesso, esse larguei antes que Quintana passasse a tradução para Drummond.

Sei de todos os méritos do romance, e os reconheço, mas, depois de centenas de páginas de lenta digressão, me deu um troço, uma ânsia de ação. Tive de ver um filme do Stallone.

Ao escrever a frase na agenda, prometi que voltaria a Proust, porque sei que não serei um homem completo enquanto não concluir a leitura de Em busca do tempo perdido.

Passados todos esses anos, aquela agenda do passado gritou que ainda não resolvi o problema, ainda não corrigi a falha: não li todo o Proust. É uma parte de mim que falta e que mostra outras por completar, mostra tudo o que preciso fazer: os e-mails sem resposta, os filmes que não vi, os telefonemas que não dei, os textos que hei de escrever e até o cabelo que clama por um corte. Terrível, sou todo faltante. Por quê? Porque não tenho agenda.

Está decidido: terei uma agenda.


29 de setembro de 2016 | N° 18647 
L.F. VERISSIMO

Vício

Ninguém desconfiou que os 10% por mês sobre o capital aplicado oferecido pelo megavigarista americano Bernard Madoff era bom demais para ser verdade. Grandes aplicadores, que você imaginaria escolados em vigarices, perderam milhões quando a tramoia foi revelada. O próprio Madoff, ao ser preso, se declarou surpreso com o sucesso do seu esquema. Como ele funcionara durante tanto tempo?

Paul Krugman escreveu, na época, que não havia muita diferença entre o esquema de Madoff e o que em essência acontecia, às claras, em todo o setor. Madoff se autodenunciou e foi preso, mas a prática de premiar o capital especulativo até a beira da falcatrua continua, só com retorno menos espetacular do que o que Madoff prometia.

O capital se protege de várias maneiras, e uma delas é a de atuar dentro de limites que chamam de éticos, mas que são práticos, valendo-se de uma certa elasticidade moral. Grandes bancos não podem fechar, mesmo que atuem na zona crepuscular entre o permitido e o criminoso. E a leniência se estende a outras formas de autopreservação da espécie.

Quando executivos das três maiores montadoras de carro dos Estados Unidos chegaram a Washington para pedir dinheiro ao governo, cada um veio no seu jato particular. A desculpa era de que teriam ido de carro se seus carros fossem de confiança. Pelo menos as montadoras gastaram bem o presente que ganharam e hoje estão em boa situação. Muitos dos bancos subsidiados para não falirem na mesma época usaram parte da ajuda para dar as regalias e os milionários abonos de sempre aos seus executivos.

O socorro que o capital dá a si mesmo lembra aqueles programas adotados em países que, em vez de combater o comércio de drogas, dão dinheiro para o usuário manter seu vício sem precisar recorrer ao crime. As instituições financeiras responsáveis pela crise atual estão sendo pagas com dinheiro público para manter seus maus hábitos. Os grandes aplicadores que confiaram em Madoff não foram imprudentes, apenas sucumbiram ao sonho de todo rentista, o sonho do lucro fantástico. Confiaram que Papai Noel existia.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016



28 de setembro de 2016 | N° 18646
MARTHA MEDEIROS

80 anos


Certas idades cintilam mais do que outras. Os 15 marcam o fim da infância, os 30 não teriam tanta relevância não fosse Balzac e os irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle, já os 40 nunca precisaram de livros e canções: eram donos absolutos do título “metade da vida”, o momento de decidir se as escolhas feitas na juventude tinham fôlego para manter-se ou se era hora de mudar de rota. Isso antes de vivermos tanto. Hoje em dia, metade são os 50, numa existência (otimista) de 1 a 100. Todos acusam o golpe: fez 50, passou para o outro lado.

Os 60 e 70 são marcantes também, por mais que esses números causem rebuliços na vaidade: como eu, me sentindo tão jovem, seja considerado de terceira idade? Como eu, com a cabeça tão boa, tenha os joelhos fracos e os olhos embaçados? Como eu, logo eu, tenha chegado até aqui sendo chamado de tio e tia se até ontem era um playboy, uma gatinha, um ser ainda valioso no mercado erótico? É quando começa o curto-circuito entre a jovialidade do espírito e a decadência do corpo, entre a jovialidade da mente e a decadência da vontade; aprendemos forçosamente a nos equilibrar entre o mais e o menos, entre o novo e o velho. Há que se ter maturidade para equalizar e extrair dessa passagem do tempo um diagnóstico positivo da experiência.

Até que se chega aos 80. É a idade (com margem de erro de dois pontos para mais e para menos) dos pais dos meus amigos, dos meus próprios pais e de inúmeras pessoas que admiro. E o que tenho visto é só celebração. Os 80 são motivo de festa, de orgulho e de uma espécie refinada de liberdade. Já não há mais tanta preocupação com o que os outros pensam, assume-se um pódio de chegada onde o troféu é olhar para trás e ser grato pela estrada percorrida, pelas conquistas profissionais, pela família constituída e pelos amores que nos tiraram o sono – para o bem e para o mal. Quem é que chega aos 80 sem nada para contar? Não há como não se ter uma biografia aos 80. Você pode se sentir vencido, mas venceu também. Foi além da expectativa do IBGE. E o prêmio é não precisar mais atender às demandas do mercado.

Não tenho pressa nenhuma de atingir essa meta, sei que tem o lado perturbador, mas, sendo inevitável (aquela alternativa? não, obrigada), melhor render-se e desfrutá-la. Esta crônica é dedicada ao genial Luis Fernando Verissimo, um dos poucos ídolos que tenho – o outro é Woody Allen, rumo aos 81. Grandes homens que souberam honrar os anos vividos, que compartilharam conosco sua inteligência, humor e cultura, e que nos fazem perder o medo de chegar lá: onde tantos temem a aridez e a improdutividade, ainda há terreno fértil, esperança e futuro.



28 de setembro de 2016 | N° 18646 
PEDRO GONZAGA

NOITE

A crônica é um gênero inegavelmente diurno. Chega com o jornal. Se a perdemos no café da manhã, bebemo-la no intervalo do trabalho, no transporte público, no espaço compulsório de uma espera, quando muito, furtamo-la sobre os ombros de alguém à hora do almoço. Por isso, seus assuntos são as coisas do dia: a política, o esporte, a cultura e os costumes. 

Se a crônica é um pouco mais íntima, se se nutre de reminiscências e de anedotas pessoais, ainda assim mantêm a virtude das conversas cotidianas, raramente ganhando o tom grave que reservamos às coisas da noite. Poderia pensar em inúmeros poemas que se passam ao anoitecer, de madrugada, que foram concebidos para nos envolver como o sereno. 

E nem precisamos ir aos românticos que veneravam a lua encharcados de melancolia, versos noturnos estão por toda parte (não sei quantas vezes é noite em Drummond, quantos vinhos os poetas chineses beberam ao relento). Peço, em contrapartida, que vocês tentem se lembrar de quantas crônicas frequentam esses lugares. Seguro que as há, mas é de contar nos dedos.

Penso nisso enquanto vejo o dia cair preguiçoso, sucedido pelo frio saudável das primeiras noites da primavera. Uma crônica sobre a noite. Entre os galhos que se debruçam sobre a sacada do Hotel Charrua, em Santa Cruz do Sul, brilha o planeta vizinho e inabitável, a minha primeira grande decepção cósmica, ainda pelas mãos do Carl Sagan.

As luzes da rua se acendem de súbito, um pouco fora do tempo. Por vezes, seria bom ser como o Mickey no Fantasia, controlando todos os efeitos ao redor, suspendendo por alguns minutos a iluminação pública, os carros de som dos candidatos desesperados, mesmo que fosse preciso pagar o preço que o bom camundongo paga no desenho, o caos completo no porvir.

Valeria a pena. Porque esta noite que vocês agora leem, só faltou que chegasse lenta, três minutos em que tivesse permanecido estática, três minutos em que o amor a tivesse por fundo fixo. Depois, estão as coisas do depois. Uma noite perfeita de três minutos. Mesmo que apenas na página da crônica.


28 de setembro de 2016 | N° 18646 
DAVID COIMBRA

Será Humberto, Roberto ou Florisberto?


O Roys gostava de botar apelido nos outros. Foi ele quem apelidou o Jorge de Barnabé, por causa de um detetive de seriado chamado Barnaby Jones.

O Luiz Carlos era baixinho e gordinho. Virou Barril.

Já o Henrique tornou-se para sempre Diana, porque tinha uma cachorrinha com esse nome.

O Zoreia acho que também foi o Roys quem apelidou, porque ele vivia usando uma camisa estampada com o desenho do Topo Gigio, aquele ratinho italiano de orelhas enormes.

Mas, como o Roys era bem magrinho, algum gaiato começou a chamá-lo de Languiça, e ele ficou furioso. Bastava a gente gritar “e aí, Languiça!” e o Roys pedia briga. Um erro. Como inventor de apelidos, o Roys devia saber que o apelido pega, mesmo, quando o cara se importa.

Já contei do Meia Longa, não é? Meia Longa era personagem de propaganda de caderneta de poupança. Aparecia um coelho e tocava a música:

“Eeeeu sou o Meia Longa, coelho muito sabido, amigo das crianças, o multiplicadooor...”.

Bem. Por algum motivo, apelidamos um baita negão, nosso vizinho, de Meia Longa. Nunca vi ninguém ficar tão brabo por causa de um apelido. Ele morava no térreo, a janela da sala dando para a rua. Nós íamos ali para a frente e cantávamos, em coro: “Eeeeeeeu sou o Meia Longa, coelho muito sabido...”. Em um segundo, ele abria a porta e saía correndo atrás de nós. Gritava que ia nos matar e acho que mataria mesmo, se nos alcançasse. Era muito engraçado.

O Plisnou, você deve saber, é um aportuguesamento de please no, “por favor, não”. A origem do apelido é uma piada horrível que o Jorge Barnabé contava. O Jorge Barnabé não sabe contar piada. Ele conta a Pior Piada do Mundo. Meu Deus, que piada medonha. A Pior Piada do Mundo é tão ruim, que estraga festas e espalha bolinhos. O Barnabé adora contá-la, mesmo que acabe com a noite. Ele disfarça, diz que é outra história e, quando estamos desprevenidos, ataca com a Pior Piada do Mundo. É muito desagradável.

A do Plisnou também é terrível, mas não tanto.

Hoje em dia, os brasileiros pouco colam apelidos uns nos outros. Estamos mais sérios. No futebol, por exemplo, os jogadores agora são chamados por nome e sobrenome. É uma das causas da decadência do futebol brasileiro. Perdemos a manha, entende? Atacante bom é atacante com apelido: Pelé, Garrincha, Didi, Vavá, Zico, Tostão, Zizinho, Palhinha, Fumanchu, Lula, Babá são muito melhores do que esses sujeitos com nome de contador: Alan Cardoso, Rodrigo Souza...

Mesmo zagueiros são melhores com apelido. No Próspera, de Criciúma, o becão Nivaldo era chamado de Churrasco devido ao que fazia com os atacantes.

Mas os dirigentes não gostam de apelidos. Uma vez, o Criciúma contratou o centroavante Cláudio Batata, do Inter. Antes de o jogador chegar, o vice de futebol do clube nos chamou, aos repórteres, e pediu:

– Não chamem o cara de Batata. Chamem de Cláudio. Por favor...

Tudo bem, decidimos acatar. Aí, olhei para o pátio do estádio e vi aquele tipo chegando. Era um alemãozinho retaco, o nariz redondo. Parecia uma batata caminhando. Só podia ser ele. Aproximei-me e perguntei:

– Tu és o Cláudio? E ele: – Não. Eu sou o Batata.

Rapaz de personalidade.

Agora, neste tempo de escassos apelidos, fiquei encantado com a criatividade do pessoal do departamento de propinas da Odebrecht. Eles botavam codinomes nos políticos financiados pela empresa. Palocci era o Italiano. Meio óbvio, talvez. Mas os políticos gaúchos não tinham pseudônimos tão óbvios assim. 

Verdade que, nas mensagens interceptadas pela polícia, há um Betão, que provavelmente é Roberto, Humberto ou Florisberto. Mas também há o Legislador, que é imponente demais, deve ser ironia. E consta o Animal, que pode ser elogio ou xingamento. E ainda os misteriosos Três e Zambão.

Quem serão eles? Faça o seu palpite.

terça-feira, 27 de setembro de 2016



27 de setembro de 2016 | N° 18645 
DAVID COIMBRA

A unha do dedo minguinho


Conheci um cara que tinha a unha do minguinho bem comprida, maior do que as outras. Era a unha da mão direita, acho. Ele andava sempre por perto da casa do meu avô, na Rua Dona Margarida, e parava na sapataria dele para conversar. Não lembro do que fazia, não lembro do conteúdo do que falava. Da unha, jamais esquecerei.

Via-se que era unha mantida com zelo. Era mais lustrosa do que as outras nove e na certa ele a lixava criteriosa e diariamente. Uma unha de estimação, por assim dizer. Prolongava-se do dedo, como um istmo, por mais de um centímetro.

O homem conversava gesticulando, brandindo a mão que portava a unha como se empunhasse uma bandeira. Eu não conseguia tirar os olhos do minguinho dele, achava aquele dedo muito especial. Em casa, olhava para o meu próprio minguinho e cogitava: deveria parar de cortar a unha?

Uma vez disse isso para a minha mãe e ela quase vomitou. Falou que aquilo era um nojo e que era coisa de cobrador de ônibus. Ora, não tenho nada contra cobradores de ônibus, parecem-me trabalhadores dignos, mas a argumentação não comoveu minha mãe.

Passaram-se os anos e minhas unhas prosseguiram com seu corte ortodoxo.

Um dia, ao entrar no Linha 20, que fazia o trajeto para o IAPI, fui cruzar a roleta e, ao olhar para a mão do cobrador, além de um maço de notas dobradinhas na horizontal, o que avistei? Sim, você acertou: a unha do minguinho dele era maior do que as outras, prolongava-se orgulhosamente do dedo, feito um trampolim que se prolonga da piscina.

Fiquei fascinado. Então minha mãe estava certa: tratava-se, realmente, de um costume dos cobradores de ônibus. O que me fez especular: será que o sujeito de quem me lembrava, lá da Dona Margarida, era cobrador de ônibus? Se fosse, por que os cobradores de ônibus usam as unhas dos minguinhos salientes? No que isso lhes facilita a lida diária? Será um código profissional?

Não é por nada disso. Descobri apenas na semana passada, ao ler o jornal. A matéria contava que, agora, meninas de Nova York estão raspando totalmente os cabelos. Ficam carecas, os crânios lisos como nádegas.

Puxa vida, cabelos são fundamentais para a aparência. Não por acaso, os muçulmanos proíbem as mulheres de destapar a cabeça. Para um muçulmano, uma cabeleira de Gisele Bündchen é perturbadora. E, vamos convir, para um cristão também. E para um judeu. E para um budista. E para um ateu.

Sendo assim, por que as jovens nova-iorquinas estão raspando os cabelos e tornando-se Espiridianas Amins?

Uma moça, entrevistada na reportagem, deu a resposta:

– Nunca me senti tão forte como agora, sem os cabelos.

Um Sansão do avesso. Só que a força que ela sente não vem da cabeça nua; vem da ideia de ser diferente. Ela se afirma como indivíduo, graças à distinção.

Hoje, mais do que nunca, alguém que se distingue, mesmo que pela bizarrice, atrai admiradores e às vezes até seguidores.

Olhe para Donald Trump – ele leva uma franja folclórica na frente da testa e várias ideias folclóricas atrás. Deveria ser apenas isso mesmo: um folclórico. Mas, devido ao monótono bom senso da sua adversária, pode se eleger presidente dos Estados Unidos. No Brasil é igual: os ponderados merecem bocejos; os bizarros, veneração religiosa. Bem. Talvez eu deixe crescer a unha do minguinho.


27 de setembro de 2016 | N° 18645 
CARPINEJAR

Triste morte

Você só vê as vítimas da morte. Até acha que ela é infalível. Só visualiza o trabalho feito, os obituários implacáveis, os caixões descendo no chão ou subindo nas paredes, a sua inclemência com todas as faixas etárias.

Mas não enxerga as suas falhas. Não percebe o quanto ela deixa a desejar em termos de aproveitamento.

A morte também é humana e incompetente. Às vezes, se engana de horário. Às vezes, erra a pontaria. Já dormiu em pleno expediente comercial, já fez greve por aumento de salário, já cometeu o vacilo mais bobo e se apaixonou pelas suas presas.

A morte nem sempre acerta. Amarga dúvidas vocacionais e crise de consciência. Fraqueja diante de velho casal que dorme de conchinha e mente para o destino que não encontrou ninguém lá.

A morte não é imbatível como julgamos. Permite aviões com equipamento vencido pousarem, autoriza ônibus com motorista cochilando não cair em curva, salva pedestres desatentos.

Ela sopra vento frio no rosto de suas próximas encomendas para dar chance de se protegerem e mudarem de percurso. Educada, alerta a intuição de cada um antes do fim.

Há mais quase acidentes do que acidentes em seu currículo. Quantas tragédias foram evitadas pelos seus assobios?

A morte é a mais triste das criaturas, nunca é comemorada. Não se dignifica com o trabalho. Não se converte ao bem poupando ninguém. É gerada em nosso nascimento, porém permanece a vida inteira intratável como vilã.

Seus fracassos generosos não são noticiados pelos jornais e terminam desconhecidos. Quem ganha com a omissão é o anjo da guarda, que recebe créditos quando alguém escapa por um fio de uma situação de perigo.

A morte tem seus segredos de amor, sua coragem parece ser a de negar a si mesma. Cansa dos choros, gritos e três batidinhas na madeira, não suporta os arranjos acobreados dos velórios, a comidinha fria e a decoração fúnebre de suas festas.

Certo que também experimenta os seus momentos inspirados e cruéis de guerras, terremotos e chacinas, porém odeia sangue, prefere levar as pessoas dentro do sono, onde pode se misturar à paz das lembranças e conhecer melhor os desejos do falecido. E abomina igualmente o amadorismo de balas perdidas e a crueldade desnecessária do narcotráfico.

A morte nem sempre mata – é a gente que não tem capacidade de provar as suas distrações invisíveis.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016


26 de setembro de 2016 | N° 18644 
MARCELO CARNEIRO DA CUNHA

QUANTO A INTERNET PEGOU FOGO



E voltou uma das melhores entre as melhores, Halt and catch fire, que nos mostra o passado da internet, um passado, caros leitores, que chega a ser mais fascinante do que o futuro.

Houve uma vez um mundo sem e-mail. Sem arquivos anexados. Sem jpg, sem mp3, mp4, sem @ ou www. Esses elementos foram surgindo e se construindo e transformando a vida. Assistir a essa transformação é uma oportunidade incrível, ainda mais quando muitos de nós vivemos no mundo antes, durante e depois, até mesmo porque a internet como a conhecemos existe há uns 20 anos, mais ou menos.

HCF é a história das pessoas que criaram esse admirável mundo novo. Primeiro, produzindo computadores pessoais, os PCs, acessíveis pra pessoas como o senhor aqui ao lado e esse que vos atormenta. Depois, criando programas capazes de transformar o PC no melhor amigo que a gente jamais teve. E então criando a internet, que conectou a todos esses PCs com as pessoas diante deles no mundo inteiro.

Halt and catch fire narra essa nova era desde o início, e por isso mesmo é tão boa de ver. Quem resiste a um bom modem, daqueles de linha discada, rangindo pra nos conectar a 14,4 k quando tudo dava certo? Eu nem tento resistir, e espero que o mesmo aconteça com vocês. Eles gastam um certo tempo com os dramas das pessoas, quando eu gostaria de passar mais tempo vendo as maquininhas surgindo. Mas, como sempre lembro, eu sou um insensível, e vocês, não. Aproveitem onde e quando der.

Fica a dica.



26 de setembro de 2016 | N° 18644 
CÍNTIA MOSCOVICH

BRAVO!

Em O inverno e depois, seu mais novo romance, Luiz Antonio de Assis Brasil volta a três temas que lhe são caros: a música, o confronto entre a civilização e a barbárie e a evocação da memória através dos sentidos.

Contando a história de Julius, um músico gaúcho que estudou na Alemanha, integrante de uma orquestra paulista e que volta à estância da família para recolher-se e estudar – finalmente se encoraja a executar o concerto para violoncelo de Dvorák, sonho da vida –, o livro convoca os sentidos com uma profusão de aromas, formas, cores, texturas, sons e muita, muita música.

Fiel à busca pela essencialidade e precisão a que se entregou especialmente na trilogia de livros curtos de Viajantes ao Sul, Assis Brasil chega aqui a um meio termo entre as obras brevíssimas e as mais alentadas, aquelas de início de carreira. Com um sentido de prosódia muito refinado, o autor se mantém atento à sonoridade e à harmonia, com ritmo e encadeamento de prosa que não são menos que impressionantes.

Dono de uma ironia e de um humor muito peculiares, Assis constrói um protagonista incapaz de agir de forma espontânea e que elabora mentalmente frases com que tenta tornar lógico o cipoal de sentimentos que o assola. Ao mesmo tempo, leva seu leitor por ruas e ambientes europeus e pelo descampado do pampa e suas construções precárias, numa espécie de comunhão do melhor de dois mundos.

Ex-violoncelista da Ospa, amante inveterado de Mozart, o autor faz da música um personagem praticamente autônomo e que colore a narrativa de brilho e vida, tanto que, sem medo ao exagero, se pode afirmar que é possível ouvir evoluções de vários instrumentos - com o bônus de narrativas tão vibrantes que chegam à beira da exaltação.

Explorando as virtudes do cello, estabelecendo uma relação sensual com o instrumento, o escritor vai formando um tecido narrativo que é leve mas espesso, uma armação voluptuosa e delicadíssima, como se, com seu texto, tocasse a intimidade de um corpo - ou como se as palavras pudessem compor uma orquestra. Ou contar, como contam, uma história de amor.

26 de setembro de 2016 | N° 18644 
DAVID COIMBRA

Mais 500 brigadianos nas ruas


É bom escrever sobre filho pequeno. Você escreve sobre seu filho pequeno e o leitor apita. Uóóó...

O cronista que consegue fazer o leitor apitar é o cronista realizado.

O problema é que essa fórmula só funciona até a adolescência. Chega a adolescência e seu filho vira petista. Todo adolescente é petista e todo petista é adolescente. Ninguém vai fazer uó para um petista.

Eu, por enquanto, ainda posso explorar meu filho. Ele está com nove anos de idade. Mas agora deu para fazer o que nunca tinha feito: acorda-se no meio da noite e vai para a cama dos pais. Uma chatice.

Ontem, no café da manhã, ao comentar a respeito, reclamei:

– Quando tu era pequeno, tu não sentia medo de dormir sozinho!

E ele, depois de respirar fundo, argumentou:

– Naquela época, eu não sabia como era o mundo...

Não fiz uó. Suspirei de resignação. A culpa é minha, por ter deixado que ele assistisse ao Jornal Nacional.

Meu filho sente medo da violência urbana DE PORTO ALEGRE. E ele vive em um lugar a 8.300 quilômetros de distância, em que foi registrado um único assassinato nos últimos 10 anos.

É a globalização. O mundo está realmente interligado.

Conto isso para repetir o que tenho dito: resolva o problema de segurança pública no Brasil e 70% dos problemas estarão resolvidos. Com segurança, todo o resto ficará mais fácil. E é claro que segurança não é apenas polícia na rua. Polícia na rua é parte da solução – só que parte fundamental.

Portanto, vou insistir: a Brigada poderia, sim, fazer o trabalho dos agentes de trânsito, os azuizinhos, o que daria maior sensação de segurança à população.

Foi o que escrevi no fim de semana, e recebi grande apoio. Mas também recebi contestação. Entre elas, a do coordenador de comunicação da EPTC, o muito competente e muito afável jornalista Cláudio Furtado. Ele me escreveu um e-mail respeitoso e esclarecedor. Reproduzo abaixo:

“Perguntaste, na tua coluna de ZH, ‘para que serve o azulzinho’. Respondo: antes de tudo, para ser respeitado como uma autoridade civil, sem arma na cintura, com a missão de reduzir a acidentalidade a partir da aplicação das leis do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Sua presença nas ruas não impede, e até facilita, as ações da Brigada Militar nas questões da segurança pública. EPTC, BM e Polícia Civil realizam diversas ações conjuntas, como as atividades do Balada Segura, mas cada entidade de acordo com suas atribuições.

Gostaria de lembrar, também, que além dos 500 agentes, entre os mil funcionários da EPTC estão arquitetos, engenheiros, advogados, técnicos especializados em planejamento do trânsito e transporte, também na implantação e manutenção do mobiliário urbano e da sinalização da cidade, além de administrativos, todos concursados. Realizam atividades diárias no gerenciamento da mobilidade”.

A correspondência do Cláudio reforçou minha convicção. Sou pela manutenção da EPTC, com seus funcionários de burocracia e de administração. E pela incorporação da Brigada às tarefas de vigilância do trânsito. É só treinar o brigadiano. Imagine Porto Alegre com 500 brigadianos a mais nas ruas. Seria quatro vezes mais do que o efetivo enviado pela Força Nacional de Segurança. Não seria a solução, sei bem. Mas ajudaria, e muito. Tudo para que os gauchinhos não sintam mais medo à noite.


26 de setembro de 2016 | N° 18644 
L.F. VERISSIMO

Filhote

No seu discurso de encerramento da Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas realizada em Bretton Woods em julho de 1944 para combinar como seriam as relações comerciais depois da II Guerra Mundial, que chegava ao fim, lorde John Maynard Keynes, um dos inspiradores e o principal participante do time inglês no encontro, disse que se a cooperação que as nações tinham demonstrado durante a conferência continuasse, “o pesadelo em que a maioria de nós passou tempo demais das suas vidas terá acabado”, e “a irmandade dos homens terá se transformado em mais do que apenas uma frase”. A competição monetária e os conflitos e barreiras que tinham levado a duas guerras mundiais deixariam de existir.

O otimismo declarado por lorde Keynes só se explica pelo seu cavalheirismo ou gosto pela retórica. Ele tinha sido derrotado na reunião que se encerrava. Em Bretton Woods, as boas intenções esconderam a questão real do encontro: a que Roosevelt já tinha proposto a Churchill quando condicionou a entrada dos Estados Unidos na guerra ao fim dos mercados cativos coloniais e do império econômico britânico, e a necessidade de garantir mercados livres para a produção americana que se multiplicaria com a mobilização para a guerra.

Enquanto Keynes acreditava que o Banco Mundial – insistência sua – realmente favoreceria a irmandade entre os homens, o secretário do Tesouro americano, Henry Morgenthau, mais interessado no Fundo Monetário Internacional, empenhava-se na mudança do centro financeiro do mundo de Londres para Washington e Wall Street.

O que venceu em Bretton Woods não foi o espírito público de Keynes, mas o espírito prático dos americanos. Morgenthau estava lá para sacramentar a transferência do poder econômico da Inglaterra para os Estados Unidos, a única nação que sairia da guerra em condições de impor sua vontade. E impôs. O discurso de Keynes prevendo que a cooperação entre as nações traria uma era de inédita prosperidade universal foi muito aplaudido, mas o resultado prático de Bretton Woods foi que os americanos ganharam acesso aos mercados antes dominados pelo desdentado império britânico e a prosperidade universal que veio se concentrou principalmente nos Estados Unidos.

Keynes morreu pouco depois de Bretton Woods. A derrota da sua visão do que poderia ter sido, pela imposição americana, tem uma ponta de ingratidão: afinal, foi ele o teórico do dirigismo econômico de Roosevelt que salvou o capitalismo americano de si mesmo na crise dos anos 30. Filhotes do keynesianismo, como no Brasil do PT, tiveram a mesma sorte das boas intenções do lorde. O discurso foi bonito, mas ganhou o outro lado. E o pesadelo continua.

domingo, 25 de setembro de 2016


YOKO OGAWA - tradução RITA KOHL
25/09/2016  02h05

Leia trecho inédito de romance de Yoko Ogawa


SOBRE O TEXTO O trecho abaixo abre o terceiro capítulo do romance "O Museu do Silêncio", da japonesa Yoko Ogawa, que a Estação Liberdade lança no começo de outubro. O enredo gira em torno da contratação de um museólogo por uma senhora que deseja organizar uma coleção de peças que sintetizam a existência de seus proprietários, todos mortos.

A sala que ela chamava de acervo era a antiga lavanderia, na extremidade oeste do porão. No instante em que a porta se abriu, senti o cheiro de tecido mofado, ou de plantas murchas, enfim, o cheiro que a matéria exala quando apodrece.

Era um espaço amplo, mas sujo e muito bagunçado. Coisas diversas (talvez as peças da coleção?) estavam espalhadas aqui e ali, sobre armários, cômodas e mesas, dispostas desordenadamente. Nada parecia estar no lugar certo. Mas o que estava me incomodando não era a situação caótica da sala, era outra coisa. Demorei algum tempo para compreender o quê.

Andamos, os três, até o centro da sala. Era preciso prestar atenção a cada passo para não esbarrar em nada. Eu não queria nem imaginar como a velha esbravejaria se por acaso eu derrubasse ou quebrasse alguma coisa. O chão tinha um design moderno, com ladrilhos em padrão xadrez. Graças às janelas estreitas no alto das paredes, pelas quais se via o céu e as plantas do jardim, a iluminação era boa, apesar de estarmos no subsolo. Havia varais pendurados no teto, ferros de passar e antigas máquinas de torcer roupa caídos pela sala, vestígios do tempo em que ali funcionava uma lavanderia.

As salas de acervo, de qualquer natureza, costumavam ser lugares familiares para mim. Eu gostava de passar o tempo encarando os arquivos, fechado naquele cômodo absolutamente silencioso onde os visitantes não podiam entrar. Mas aquela era diferente de qualquer sala de acervo que eu conhecesse. Era como se cada objeto se impusesse livremente, segundo seus próprios caprichos, criando uma dissonância insuportável. Mesmo em depósitos muito desorganizados sempre paira no ar um senso de solidariedade entre todas as peças reunidas por um mesmo museu. Mas ali não havia nenhum vínculo, nenhuma união. Elas não tinham consideração suficiente nem sequer para voltar o olhar para os seus companheiros. Isso me deixava aflito.

Um carretel, um dente de ouro, luvas, um pincel, botas de alpinismo, um batedor de ovos, gesso ortopédico, um berço... Experimentei olhar com cuidado para cada uma das coisas próximas a mim, mas de nada adiantou. Só fiquei mais desorientado.

– São objetos de recordação dos mortos –disse a velha. – Todos deixados pelas pessoas da vila.

Sua voz ecoou muito mais próxima do que na biblioteca.

– Quero que você faça um museu para expor e conservar isso tudo.

Nesse momento finalmente percebi o motivo do meu desconforto. A velha não estava de chapéu como de costume. Por entre o cabelo branco e ralo que ainda lhe restava, espiavam duas orelhas minúsculas, pequenas demais mesmo levando-se em consideração sua estatura. Eram como duas folhas secas amarrotadas presas às laterais da cabeça. Tinham perdido completamente a forma de orelhas, eram apenas cicatrizes ao redor dos buracos dos ouvidos.

– Nossa, são muitos... –comentei devagar, tentando desviar a atenção das orelhas.

– Comecei a reuni-los no outono dos meus onze anos. Essa coleção tem uma história longa demais para ser narrada. E ela ainda continua, daqui pra frente.

A menina sustentava a velha com segurança, com o braço direito ao redor do seu ombro e a mão esquerda apoiada no quadril. Parecia já saber perfeitamente quanta força era necessária, e onde aplicá-la. As duas estavam unidas como se fossem parte uma da outra.

– Sempre que alguém da vila morre, recolho um único objeto relacionado àquela pessoa. É uma vila pequena, como você sabe, então não é como se morresse alguém todo dia. Mas não é fácil reunir esses objetos, algo que descobri na prática. Talvez fosse pesado demais para uma criança de onze anos. Mas, mesmo assim, consegui fazê-lo por muitas décadas. A minha maior dificuldade é porque não me contento com uma recordação qualquer. Nunca dei um jeitinho pegando qualquer coisa fácil, uma roupa que a pessoa vestiu uma ou duas vezes, uma joia que viveu fechada no armário, uns óculos feitos três dias antes de morrer. O que eu quero são coisas que guardam, da forma mais vívida e mais fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram, entende? Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que possa eternamente impedir que a morte seja completa. Não são lembrancinhas sentimentais, não tem nada a ver com isso. E claro que o valor financeiro também está fora de questão.

A velha engoliu a saliva e afastou, irritada, o cabelo que caía sobre a testa. Pela janela, vi um passarinho cruzar o céu alto. As recordações continuavam todas quietas ao nosso redor.

– Esta aqui é um bom exemplo. A um sinal de seus olhos, a menina estendeu a mão, pegou um único objeto em meio à bagunça e me mostrou. – O que é isso?

Era apenas um anel, simples demais para um acessório, frágil demais para ser uma peça de máquina.

– Há mais ou menos cinquenta anos uma prostituta de meia-idade foi assassinada em um hotel da vila. Além de ter sido esfaqueada, seus mamilos foram cortados e levados embora. Foi o assassinato mais sórdido da história da vila e, desde então, não houve mais nenhum caso de homicídio. Por causa da sua profissão, não apareceu nenhum parente, e eu fui a única pessoa que foi à sua cremação. Eu disse que era a sua única amiga e me deixaram participar. Claro que isso era só uma mentira para conseguir algum objeto de recordação. Depois que ela foi queimada, encontrei isso aí em meio às cinzas. Quando peguei, ainda estava quente, como se guardasse o calor do seu corpo. Decidi que essa seria a sua recordação. É um DIU1, anticoncepcional. Bom, o próximo...

1. Nota da tradutora: Embora atualmente o DIU (dispositivo intrauterino) apresente a forma de T, os primeiros modelos tinham forma de anel.

YOKO OGAWA, 54, escritora japonesa, é autora de "Hotel Íris" (Leya). - RITA KOHL, 32, é tradutora e intérprete do japonês.

MARCOS MENDES
25/09/2016  02h04

O teto de gastos e a proteção aos pobres


RESUMO Autor, que assessora equipe econômica, defende a proposta de estabelecer um teto ao gasto público. A PEC 241, proposta pelo governo, levaria a uma racionalização das despesas que seria fundamental para o reequilíbrio fiscal, a volta do crescimento e a queda da inflação –em benefício dos setores mais pobres.

Entre 1997 e 2015, a despesa primária (despesa total menos juros da dívida) anual do Governo Central triplicou em termos reais. Isso equivale a um crescimento médio de 6,2% ao ano acima da inflação. Se a despesa continuar a crescer nesse ritmo, não haverá dinheiro para pagá-la.

Com dispêndio crescente, o governo precisou extrair mais dinheiro da sociedade. A carga tributária subiu fortemente, chegando a 32,7% em 2015, valor muito acima da média de países emergentes. Mas não se pode continuar aumentando a carga tributária indefinidamente. Os impostos já sobrecarregam as empresas e as famílias.

Arrecadação estagnada e despesa crescendo resultam em deficits primários maiores a cada ano, chegando a R$ 170 bilhões (2,7% do PIB) em 2016. Em má situação financeira, o governo acaba tendo que pagar juros mais altos, pois o seu risco de default aumenta. Deficits primários e juros mais altos aceleram o crescimento da dívida bruta, que disparou de 53,8% do PIB para 69,5% em apenas dois anos.

Quando as empresas percebem que o governo está em dificuldade financeira, passam a temer aumentos abruptos de carga tributária, aceleração da inflação e instabilidade política. As agências de avaliação de risco rebaixam a nota de crédito do governo. Nesse cenário de perda da confiança no futuro de seus negócios, as empresas, num primeiro momento, evitam investir; posteriormente, passam a demitir. Instala-se a recessão.

CICLO VICIOSO

O crescimento mais baixo prejudica a receita do governo, agravando o quadro fiscal. Entra-se em um ciclo vicioso: o desequilíbrio fiscal derruba a economia, e a retração da economia piora a situação fiscal. Estamos em situação difícil: não há como financiar o crescimento real de 6% ao ano dos gastos públicos, e a economia já acumula queda do PIB de 7% em dois anos.

É nesse contexto que se está propondo a PEC 241/2016, que estipula limite para o crescimento da despesa primária. A regra é simples: se em um determinado ano a inflação for, por exemplo, de 5%, no ano seguinte o gasto primário da União poderá crescer, no máximo, 5%.

A aprovação da PEC atuará na causa fundamental do problema fiscal –o crescimento acelerado do gasto–, sinalizando para a sociedade que o desajuste será resolvido. Haverá aumento da confiança das empresas, que retomarão os investimentos, gerando crescimento econômico. As receitas públicas reagirão, iniciando o processo de ajuste fiscal.

Ao mesmo tempo, o Tesouro Nacional precisará de menos empréstimos para financiar um deficit decrescente. Sobrarão mais recursos no mercado para financiar o investimento privado, o que levará à queda da taxa de juros, que impulsionará o investimento e o crescimento. Juros mais baixos vão desacelerar o crescimento da dívida pública. Também aumentarão a viabilidade dos investimentos privados em concessões de infraestrutura, reduzindo a necessidade de subsídios creditícios do governo aos concessionários, o que contribui tanto para o crescimento quanto para o ajuste fiscal.

A ideia de conter o crescimento da despesa gera o temor de que políticas sociais sejam afetadas, prejudicando os mais pobres. Na verdade, a população de baixa renda será beneficiária do ajuste. Estamos com 12 milhões de desempregados, que dependem da recuperação da economia para voltar à ativa. Os pobres são os maiores prejudicados pelo desemprego recorde.

Segundo o Ipea, em 2014, a taxa de desemprego era de 20% para os trabalhadores situados entre os 10% mais pobres, enquanto o índice estacionava nos 2% entre os 10% mais ricos. Além disso, os pobres não têm poupança acumulada para enfrentar o período de desemprego, geralmente não têm parentes ricos para lhes emprestar dinheiro, e seu acesso ao crédito bancário é limitado e caro.

A mais importante política social é a recuperação da economia e do emprego. Adicione-se a queda da inflação que advirá do ajuste fiscal. Os pobres são os mais prejudicados pela carestia.

Os mais pobres também ganharão com a PEC porque hoje não são os maiores beneficiários do gasto público. O Orçamento tem gordas dotações que beneficiam estratos sociais mais altos. Controlando-se a expansão desses gastos, restarão mais recursos para financiar programas que efetivamente atendem os pobres.

A queda da despesa com juros também favorecerá os pobres. Os juros são pagos a famílias de maior renda, que são aquelas que dispõem de reservas financeiras aplicadas em títulos públicos. Menor pagamento de juros resulta em redução do superavit primário necessário para manter a dívida sob controle, permitindo, mais adiante, a expansão de programas sociais. Ademais, ao facilitar as concessões de infraestrutura, a queda dos juros permitirá a expansão do saneamento básico e dos transportes coletivos.

Há também no Orçamento perda de recursos por ineficiência. Esse custo não é desprezível. Por exemplo, entre 2004 e 2014, o Ministério da Educação aumentou seus gastos, em termos reais, em 285%, mas isso não parece ter se refletido em melhoria significativa no aprendizado, em especial dos alunos do ensino médio. Nesse nível, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica mantém-se em 3,7; pela meta estabelecida, já deveria ter chegado a 5,2.

A fixação de um teto de gastos induzirá a administração pública, sujeita a maior controle do gasto, a buscar eficiência, beneficiando a todos. O Ministério da Saúde já deu a largada: com medidas gerenciais e renegociações de contrato, reduziu seu gasto anual em mais de R$ 1 bilhão.

SAÚDE E EDUCAÇÃO

A PEC também tem sido questionada por propor mudança na vinculação de recursos da saúde e da educação. A ideia é que o gasto mínimo (o piso) nesses setores deixe de ser calculado com base na receita do governo, passando a ser corrigido pela inflação. Há o argumento equivocado de que a receita crescerá mais rápido do que a inflação, de modo que a troca do indexador levaria a perda de recursos.

É incorreto comparar os cenários "com aprovação da PEC" e "sem aprovação da PEC" supondo que o crescimento econômico e o desempenho da receita serão iguais nos dois casos. Sem a aprovação da PEC e, portanto, mantendo-se a atual regra de correção do gasto mínimo em saúde e educação, o crescimento econômico e da receita serão muito baixos, implicando baixa correção da despesa mínima. Quando o PIB cai, como está ocorrendo agora, a correção pela receita é uma opção pior. Pelos dados dos últimos anos, a correção pela inflação geraria valores maiores que a indexação à receita desde o exercício de 2013. O critério proposto na PEC protege a saúde e a educação durante as crises.

É preciso computar o aumento de demanda por serviços públicos gerado pela deterioração econômica. Pesquisa recente da CNI (Confederação Nacional da Indústria) apurou que, em 2016, 34% dos entrevistados pararam de pagar planos de saúde e 14% transferiram os filhos da escola privada para a pública. Se não houver a aprovação da PEC e a recuperação da economia, mesmo que seja destinada uma dotação maior para saúde e educação, haverá pressão de demanda, prejudicando os usuários.

Deve-se considerar o estrago que a deterioração econômica gera na escolaridade dos mais pobres. Entre 2015 e 2016, a taxa de desemprego para jovens entre 14 e 17 anos, apurada pelo IBGE, subiu de 24% para 39%, refletindo um quadro de abandono dos estudos em busca de emprego. Essa é uma perda para a educação que independe de haver mais verbas destinadas para o setor.

É essencial lembrar que a PEC deixa fora do limite de gastos as transferências federais para o Fundeb, que financia a educação básica, mais importante etapa educacional no fortalecimento do capital humano dos mais pobres. E a complementação da União vai justamente para os Estados mais pobres.

Nada impede que o Congresso decida alocar recursos para saúde e educação acima do mínimo (como está sendo feito no Orçamento de 2017), desde que reduza despesas em outras áreas, para respeitar o teto. Esse é um ponto que ilustra outra virtude da PEC. Ela induz o Congresso e a sociedade a definir prioridades. Não será mais possível adotar a prática atual de superestimar receitas para incluir o máximo possível de despesas no Orçamento. O Congresso recobrará o seu papel de fórum de discussão das prioridades nacionais.

Ao fortalecer a restrição ao crescimento do gasto, a PEC induzirá a recuperação da economia e do emprego; beneficiará os mais pobres; criará restrições à obtenção de privilégios por grupos de renda alta; estimulará a racionalização e eficiência dos programas públicos; e permitirá o planejamento fiscal de longo prazo. Essa medida é a primeira peça da reforma do gasto, que prosseguirá com a reforma previdenciária. Sem conter os gastos, será difícil superar o cenário de deterioração das contas públicas, baixo crescimento e empobrecimento.

MARCOS MENDES, 51, economista especialista em finanças e políticas públicas, é chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda. 


Um país onde a justiça varia não pode ser considerado democrático
25/09/2016  02h09


Aquela foi uma semana marcada por importantes acontecimentos. Começou com a cassação do mandato de Eduardo Cunha por um escore arrasador, seguiu-se a posse de Cármen Lúcia na presidência do Supremo Tribunal Federal, depois as acusações contra Lula por procuradores da operação Lava Jato e finalmente a resposta do ex-presidente negando fundamento às acusações.

A maneira como aquelas acusações foram feitas não pegou bem, e pior é que, como este jornal divulgou, elas se apoiam numa delação que foi cancelada.

Quero me ater, no entanto, à significação que tem para o país a presença da ministra Cármen Lúcia na presidência do STF, conforme constatamos nas mais diversas manifestações de apoio e otimismo pelo acontecimento. E, se ele já valeu por si só, cabe ressaltar a significação da cerimônia de posse em si mesma.

Essa cerimônia se caracterizou pela presença de políticos de diversos partidos, além de personalidades como os ex-presidentes José Sarney e Luiz Inácio Lula da Silva, bem como intelectuais, advogados e artistas. Isso indicava, por um lado, o prestígio pessoal da nova presidente do STF, mas também o que significa essa instituição, no momento particularmente crítico da vida política nacional, o que ficou evidente nos discursos proferidos durante a cerimônia, expondo implicitamente essa realidade.

Nesse particular, deve-se ressaltar o discurso da ministra Cármen Lúcia que, não por acaso, fez questão de mostrar que as diversas instituições que expressam o poder do Estado brasileiro, a exemplo do Judiciário, são, de fato, instrumentos da manifestação do verdadeiro poder que emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Foi quando ela disse:

"Inicio quebrando um pouco o protocolo ou, pelo menos, interpretando a norma protocolar diferente de como vem sendo interpretada e aplicada: determina se comecem os cumprimentos pela mais elevada autoridade presente. E e justo que assim seja. Principio, pois, meus cumprimentos dirigindo-me ao cidadão brasileiro, princípio e fim do Estado, senhor do poder da sociedade democrática, autoridade suprema sobre nós, servidores públicos, em função do qual se há de labutar cada um dos ocupantes dos cargos estatais".

Por isso mesmo, como diria ela, adiante, irá informar-se de todos os dados relativos aos gastos institucionais e trazê-los ao conhecimento da população, com toda a transparência, para deixar clara a posição que adotaria em face disso. Essa questão envolve o discutido aumento salarial para os ministros do Supremo, que, por sua vez, desencadearia aumentos salariais nos vários setores judiciais, agravando a situação financeira do país.

Outro ponto importante de seu discurso diz respeito à modernização e ao aperfeiçoamento do Judiciário brasileiro, que não atende às necessidades da população, particularmente dos mais pobres que constituem a maioria.

De fato, um país onde a aplicação da Justiça varia de acordo com a classe social a que pertence o cidadão não pode ser considerado efetivamente democrático.

Se o discurso da presidente Cármen Lúcia foi essencialmente institucional, o do ministro Celso de Mello, decano do STF, tocou o cerne do problema que hoje atinge, de maneira alarmante, a vida política nacional.

Para o constrangimento de alguns políticos e autoridades ali presentes, que são investigados pela Operação Lava Jato, ele se referiu aos "marginais da República" que, "por intermédio de organizações criminosas" obtêm "inadmissíveis vantagens e [...] benefícios de ordem pessoal, ou de caráter empresarial, ou, ainda, de natureza político-partidária".

Também o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, abordou o tema da corrupção, destacando a atuação do Ministério Público, que tem desempenhado um papel altamente positivo no combate à ação criminosa de políticos, empresários e altos funcionários de empresas estatais.

A posse da ministra Cármen Lúcia, se teve o significado que teve, deveu-se particularmente ao papel que a Justiça passou a desempenhar publicamente na vida nacional. E a razão disso não é outra senão o alastramento da corrupção exercida, como disse o ministro Celso de Mello, pelos "marginais da República".

sábado, 24 de setembro de 2016



24 de setembro de 2016 | N° 18643 
MARTHA MEDEIROS

A colunista está em férias. Esta coluna foi originalmente publicada em 15 de junho de 2003

Ilustríssimos


Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar?

Sua família sempre lhe chamou de Guto, tanto que você já nem lembra que nome realmente tem. É Guto pra lá e pra cá. Guto no jardim de infância, Guto no colégio, Guto no clube. Você tem todos os motivos, portanto, para ficar lívido e com as pernas bambas quando sua mãe grita lá da sala: Ricardo Augusto, venha já aqui. Ricardo Augusto??? Alguma você aprontou.

Por que cargas d’água somos tratados tão respeitosamente quando alguém está com vontade de nos enforcar? Sua mulher sempre lhe chamou de Beto: só lhe chama de Valter Alberto quando está a ponto de pedir o divórcio. E seu pai só lhe chama de Ana Beatriz quando avisa que a mesada será cortada. Por que cortar a mesada da sua Aninha, papai? A senhora sabe muito bem por quê. Você acaba de virar senhora com 14 anos.

Recebo um monte de e-mails carinhosos que começam com um simples Martha, ou Cara Martha, ou Prezada Martha, uma intimidade natural, já que de certo modo participo da vida das pessoas através do jornal. Mas, quando entra um e-mail intitulado Dona Martha, valha-me Deus. Respiro fundo porque já sei que vão me detonar de cima a baixo, vão me chamar das coisas mais horrendas, vão me humilhar até me reduzirem a pó. Mas leio tudo, pois lá no finalzinho encontrarei o infalível “Cordialmente, fulano.” Cordialmente é ótimo. Cordialmente, fui esculhambada.

E quando chega uma correspondência pra você em que no envelope está escrito “Ilustríssima”? Penso três mil vezes antes de abrir. Mas abro, mesmo sabendo que não é convite pra festa, pré-estreia de filme, desfile de moda, sessão de autógrafos ou inauguração de restaurante. Ilustríssima? Só pode ser convite para a palestra de algum PhD em física quântica, para comemoração do bicentenário de uma loja de molduras ou convocação para reunião de condomínio. Os ilustríssimos não merecem se divertir.

Agora, pânico mesmo, só quando me chamam de Vossa Excelência. Como não sou o Presidente da República, volto a pensar 3 mil vezes antes de abrir a correspondência, mas resolvo não abrir coisa nenhuma. Só pode ser do Judiciário. Intimação pra depor.