sábado, 28 de fevereiro de 2015


01 de março de 2015 | N° 18088
MARTHA MEDEIROS

Os charmosos do contra

Todos vão para Machu Picchu? Eu embarco para Porto Príncipe. Todos estão lendo o novo livro do Chico Buarque? Nem abro. Show do Paul McCartney de novo? Ele pode vir 46 vezes ao Brasil que não vou. Prefiro o Guri de Uruguaiana.

O que? O Guri de Uruguaiana está lotando teatros? Desisti, não vou mais.

E assim ele vai sedimentando seu caráter. Ele, o homem que se recusa a fazer o que todos fazem. Ou ela, a que se recusa a seguir o rebanho. Pode ser tanto ele como ela. Os que formatam sua personalidade protestando contra o senso comum.

Fico dividida diante dessas criaturas. Por um lado, reconheço sua autenticidade como virtude e os admiro pela perseverança em sempre buscar aquilo que quase ninguém viu, quase ninguém leu, quase ninguém escutou falar a respeito. Eles sustentam os mercados independentes e de quebra atraem para si o charme dos aventureiros e desbravadores. São homens e mulheres únicos. Não foram produzidos em série.

Como não se apaixonar por uma criatura dessas? Criei aqui uma figura hipotética e já estou quase o convidando para jantar.

Por outro lado, acho que deve ser meio cansativo buscar sempre aquilo que é estranho, diferente, inédito, escondido, inabitado, marginal, esquisito. Ainda mais nesses tempos de conexão tecnológica, em que praticamente não existem mais segredos. O novo permanece novo por muito pouco tempo. O Mr. Autêntico tem que ser rápido.

Tem outra questão: o autêntico não quer conhecer o Rio de Janeiro, seria uma viagem óbvia. Não foi assistir a Birdman porque ganhou o Oscar. Nunca leu um livro que tenha ganhado segunda edição. Odeia ceviche sem nunca ter experimentado. Perdeu grandes festas. Valerá mesmo a pena ser um anti-herói?

Outro dia conversava com um exemplar dessa espécie e, mesmo extasiada com sua biografia de outsider, arrisquei uma perguntinha miúda: não dá para transitar entre lá e cá? Se você quer ir até a Groenlândia, pega mal fazer um pit stop em Ibiza? Não dá para infiltrar alguma literatura norte-americana em meio a sua coleção de poesia indígena? Posso pedir um filé com fritas em vez de sopa de capivara? Se eu for conhecer uma pousada no meio do mato que não está no Booking.com, encontrarei um vaso sanitário no banheiro ou isso é um luxo pequeno burguês?

Transitar entre lá e cá. Ser um pouco da urbe e um pouco da selva, um pouco curioso e um pouco rendido, ter histórias alucinantes para contar e outras bem triviais, é possível?

Então o milagre se deu. Ele disse que estaria disposto a conhecer o Rio de Janeiro (desde que pudesse dar uma passada antes em algum lugarejo com menos de 50 habitantes, sem luz elétrica). O convidei para jantar na mesma hora. Não pedi filé com fritas para não provocar. E ele não pediu sopa de capivara porque não tinha.

Ser um pouco da urbe e um pouco da selva, um pouco curioso e um pouco rendido, é possível?



01 de março de 2015 | N° 18088
ANTONIO PRATA

Fábulas monterrosianas

O burro, a mula, o jegue e o jumento se reuniram numa assembleia para redigir um manifesto contra o cavalo. Era intolerável que eles trabalhassem tanto ou mais do que o nobre colega equino, mas só no nobre colega equino ficasse hypado. “Alguém aí já viu burro em propaganda de cigarro?”, “E mau aluno com chapéu de cavalo?”, “E por que nunca criam uma mula unicórnio?”. Redigiram um manifesto a oito cascos exigindo a imediata distribuição do sucesso cavalar para a totalidade da classe equestre e uma maior equanimidade (atenção: trocadilho) na divisão internacional do trabalho.

No dia seguinte, o burro, a mula, o jegue e o jumento foram ao pasto, entregar o manifesto. O cavalo os olhou, mal-humorado, mascando um capim, com sua pinta de Charles Bronson. “Que foi?”. “Nada, nada”, responderam, trêmulos, e desistiram de entregar o documento.

Voltando do encontro, o burro, a mula, o jegue e o jumento avistaram a zebra, bebendo água num lago. Correram até lá, a cercaram e lhe deram uma surra de coices e pinotes. “Zebra vagabunda!”. “Quem você pensa que é?!”, “Não trabalha! Não faz nada! Passa o dia de pijama!”, “Vergonha da classe equina!”.

Era uma vez um gato rajado, velho e gordo que fingia ser filhote de tigre. Ele chegava a uma cidade, entrava no primeiro bar e batia no balcão: “Barman, bourbon! Eu sou filhote de tigre! Se você não me der bourbon, eu volto aqui quando crescer e te como no café da manhã!”. Todo mundo caía na gargalhada. O poodle na mesa de sinuca tirava o cigarro da boca e provocava, “Eu sou filhote de urso!”, a mariposa do lustre gritava, “Eu sou um B-52!”, o macaco, jogando dardos, emendava, “Eu sou um bonsai de King Kong!”, e o gato rajado, velho e gordo seguia para a próxima cidade.

O vírus tinha inveja da bactéria, que tinha inveja do ácaro, que tinha inveja da pulga, que tinha inveja do besouro, que tinha inveja do rato, que tinha inveja do gato, que tinha inveja do puma, que tinha inveja do tigre, que tinha inveja do leão, que tinha inveja do leão mais jovem, que tinha inveja dos leões mais jovens de antigamente, que, dizem os leões mais velhos, eram muito mais fortes, mais livres e não tinham inveja de ninguém.

“Segundo a assessoria de imprensa do time dos macacos, o lateral direito Prego, 29, não descarta processar a torcida das hienas que, durante uma cobrança de escanteio, atirou relógios, óculos e escovas de dentes em sua direção”.

A cascavel entra a milhão no Pronto Socorro: “Mordi a língua! Mordi a língua!”.

Três lesmas muito machas se reunem pra brincar de roleta russa. No meio da roda, uma caixinha de Tic-Tac com seis balas dentro. Cinco, na verdade: a sexta, idêntica às outras, é uma pedra de sal.

Décadas atrás, era impensável um ouriço transgênero. Hoje, veja só, para todo lado que se olhe percebe-se – azuis, violetas, rosadas – a grande quantidade de anêmonas


ps. Estes textos são descaradamente inspirados no livro A Ovelha Negra e Outras Fábulas, de Augusto Monterroso, Cosac Naify, tradução de Millôr Fernandes.

01 de março de 2015 | N° 18088
FABRÍCIO CARPINEJAR

Superpoder

Todo mundo é super-herói. Todo mundo tem um poder especial. Uma característica que transforma a existência.

Pode ser uma virtude disfarçada de defeito. Pode ser algo de que você não gosta em si.

Quando conheço alguém, sei que estou desvendando um superpoder por detrás da aparência e da normalidade, uma vida multiplicada por um talento.

No jardim de infância, tinha a Bárbara, que odiava sua boca carnuda. Recebeu o apelido de flor carnívora. Mas foram justamente os lábios desenhados com volúpia que fizeram com que virasse modelo de sucesso. Recordo também de Daniel, na adolescência, com dificuldade de se expressar em público. Abominava sua timidez, gaguejava quando pressionado. Pois sua retração fascinava as mulheres, que o rodeavam e falavam por ele. Não existiu um garanhão igual na faculdade.

Conservamos um trejeito em particular que revela nossa personalidade. Já vi muita gente simples com o superpoder da esperança, capaz de enfrentar diagnósticos terríveis e a morte próxima. Ou com o superpoder da paciência, desarmando brigas com uma voz mansa e calma, sem jamais levar o desaforo para o lado pessoal. Ou com o superpoder da fé, cumprindo quilômetros de joelhos em nome de uma promessa.

Há feirantes com o superpoder do grito, atraindo compradores à distância. Há ambulantes com o superpoder do tempo, farejam pela cor da nuvem ou pela arruaça dos pássaros se choverá dentro de quinze minutos e se devem levantar a barraca. Há quem tenha o superpoder de localização, de tanto andar de ônibus, e palmilham a cidade de olhos vendados.

Minha empregada Cleonice, por exemplo, tem o superpoder da risada. A casa está tensa, acabrunhada, e ela aparece cortando a atmosfera com seu bom-dia risonho. Abre as janelas e as portas ao arejar os humores. O filho Vicente mantém o superpoder dos cílios enormes. Observa de um modo tão misterioso, com aquele olhar de árvore, que logo precipita a eloquência dos familiares – sempre está em vantagem na captura de segredos. Já Mariana guarda o dom da irreverência: dramática, passional, intensa, ela sente o mundo duas vezes mais do que a média. Dela, receberá as mais bonitas, sinceras e corajosas declarações.

O ideal é que seja amado pelo seu superpoder. Descobrir alguém que identifique sua fraqueza, e a reconheça como estimulante, apesar de ser um empecilho no entendimento da maioria.


Se bem que o amor torna qualquer um poderoso.

01 de março de 2015 | N° 18088
MOISÉS MENDES

Os exterminadores

Aeconomia foi a desculpa pública para a formação da União Europeia. Mas o que os europeus queriam mesmo era livrar-se das guerras e salvar suas almas. A UE era a tentativa de cura dos horrores do nazismo e do holocausto.

O sociólogo alemão Ulrich Beck lida com os tropeços desse esforço em A Europa Alemã (Paz & Terra, 126 páginas), publicado originalmente em 2012 e só agora editado no Brasil.

Beck é o teórico da sociedade de risco, que vê o mundo sob ameaças permanentes. Valores (inclusive os da família) são fragmentados ou perdem importância. Sob a hegemonia do individualismo, o mundo estaria sempre em espasmos ou à espera de crises econômica, social, ambiental, terrorista.

A Europa Alemã trata da crise do euro e do endividamento de Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha, que transformaram a Alemanha em guardiã moral da ideia de unidade. É a isso, à Alemanha como consciência econômica e ética da Europa, que Beck se dedica.

O país que saiu de duas guerras abatido militar e moralmente passa a se impor, pelo poderio econômico, como orientador das vidas dos vizinhos arruinados. A receita é a austeridade, rejeitada pelos gregos, que recentemente elegeram um governo de esquerda.

Austeridade é cortar gastos, inclusive sociais, em nome de um equilíbrio contábil que favoreça a União. A subtração de benefícios e o empobrecimento das populações, mostra Beck, tem, na mesma medida, o favorecimento do sistema financeiro. Austeridade significa fortalecer os bancos e impor mais miséria aos que já não têm quase nada.

A Alemanha é a fiadora da tática do arrocho. O país que meio século atrás emergia de escombros impõe-se como tutor da Europa que não soube se comportar. Os alemães são “os pregadores morais de uma Europa alemã”, cercados por “um bando de países preguiçosos”, que devem ser convencidos de que precisam se reeducar, cortar despesas e restabelecer responsabilidades.

A tutela que protege credores e massacra devedores, em nome do socorro financeiro aos endividados, faz com que a própria Alemanha se reapresente involuntariamente como “a imagem do inimigo”, da qual os alemães e a UE pretendiam se livrar.

Todos são acossados, não pela Alemanha bélica, mas pela nação mais poderosa do continente, avalista de qualquer gesto feito em nome da União.

O moralismo econômico produz a indignação dos que se sentem usurpados em seus direitos. Salvar a União Europeia deveria ser preservar os sonhos e os empregos dos jovens, diz Beck, que escreveu: “Está na hora de virar o jogo, não precisamos de mais bailouts (injeção de dinheiro) para os bancos, e sim de um mecanismo de salvação social para a Europa das pessoas, dos indivíduos”.

O sistema financeiro que suga os europeus tem seus equivalentes em todo o mundo. No Brasil da estagnação, seus lucros aumentam até 25% ao ano.

Beck morreu em janeiro. Testemunhamos por ele a resposta que os gregos começaram a dar, pela democracia, ao sistema que finge socorrê-los e os deixa ainda mais miseráveis.


A Europa livrou-se do nazismo, mas ainda não sabe se um dia poderá livrar-se do que o sociólogo definiu como as catedrais sagradas e intocáveis do sistema financeiro global. As aberrações da sociedade de risco do século 21 também sabem produzir extermínios.

01 de março de 2015 | N° 18088
COMPORTAMENTO OS 40 DE OUTRAS ÉPOCAS

OS NOVOS SESSENTÕES

A cada ano, cerca de 650 mil brasileiros chegam aos 60 anos. Para a Organização Mundial da Saúde, é aí que começa a terceira idade, quando, oficialmente, eles podem ser chamados de idosos. Na prática, a palavra gera desconforto.

Conhecidos como baby boomers (nascidos entre 1945 e 1960), os sessentões de hoje estão longe da ideia de aposentados que encaram a fase como o fim das atividades úteis. Alguns se preparam para encerrar o ciclo do trabalho formal, mas descansar não é um plano viável: para eles, chegar aos 60 significa abandonar a idade cronológica e aproveitar o momento para realizar sonhos que tinham ficado para trás. É chegada a hora de conquistar a vida que queriam ter. E o que define a vida dos sessentões são liberdade e autonomia: 65% das mulheres nessa faixa etária vivem sozinhas – eles são apenas 31% –, e 71% dos idosos brasileiros têm independência financeira.

– Há alguns anos, pensar na velhice era algo que acontecia só dentro das famílias, era algo privado. Hoje, há uma atenção cada vez maior para a qualidade do envelhecimento. Finalmente, o idoso é considerado um ator político, um importante consumidor com espaço maior na sociedade – afirma Guita Grin Debert, professora de antropologia na Universidade Estadual de Campinas.

Hoje, há 23 milhões de pessoas com mais de 60 anos no Brasil. Esse número é 50% maior do que na década passada. Proporcionalmente, as regiões Sul e Sudeste concentram a maior parte dessa população. De acordo com o último Censo, das 20 cidades com maior proporção de pessoas com mais de 60 anos, 18 são gaúchas.

– Os 60 são os novos 40. A OMS encara esse grupo como idosos e isso tem suas vantagens e desvantagens. É bom porque garante direitos a um público que não era muito assistido. Ao mesmo tempo, é ruim porque eles enfrentam preconceito. São vistos como velhos, mas estão mais preocupados com a saúde, mudaram o estilo de vida porque querem viver mais e ainda têm pique para continuar trabalhando – explica Newton Terra, diretor do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS.

Segundo o IBGE, 27% dos idosos brasileiros continuam trabalhando – e isso inclui os setentões e os longevos (pessoas com mais de 80 anos). A “cronologização” da vida mudou. Para Guita, a idade é um sistema que padroniza a hora de iniciar a escola e de se aposentar, por exemplo, mas que hoje exige flexibilização.

– Estou com 63 anos e me preparando para a aposentadoria. Não é o fim da vida útil, apenas quero ter mais tempo, depois de tantos anos de produção intensa, para aproveitar outras experiências. Antigamente, a idade tinha conotação de perda, de declínio. Hoje, são os ganhos que têm destaque na vida das pessoas mais velhas – comenta a antropóloga.

Nas próximas páginas, você vai conhecer as histórias de Maria Odete, Nanete, Sergio e Milton (nas fotos, da esq. para a dir.), representantes dos novos sessentões gaúchos.


GREYCE VARGAS | ESPECIAL

01 de março de 2015 | N° 18088
ARTIGOS | DIANA LICHTENSTEIN CORSO

A VIDA EM CINZA

Imagine que você fabrique um produto qualquer: uma esponja de aço, por exemplo. Seu sonho de empresário seria tornar-se Bombril, que em nossa língua é sinônimo desse objeto. Agora imagine que os amantes almejassem o mesmo: ser tão perfeitos um para o outro, que suprimissem a concorrência. Esse é o segredo de Christian Grey e Anastasia Steele, protagonistas de um amor absoluto em Cinquenta Tons de Cinza, escrito pela norte-americana Erika Leonard James.

Respeitosos às leis do mercado, os amantes da história reúnem-se em torno de uma mesa de negociações para acertar detalhes de seu contrato. Não se trata de um casamento, mas, sim, de um código de comportamento sexual, submissão e domínio. O acordo não é pacífico, há escaramuças e desentendimentos, como em qualquer novela romântica, mas é para apimentar o final feliz, que se dá ao cabo de três volumes e filmes.

Numa cartada só, a senhora James conseguiu suprimir a maior parte das interrogações e tormentos que nos preenchem e ocupam. Gastamos a existência a indagar qual nosso valor e o que gostaríamos de conquistar, o que é ser um homem e o que é ser uma mulher. Além disso, atrapalham- nos para amar as lembranças infantis do prazer e do terror de sermos subjugados e protegidos. Para Christian e Anastasia, está quase tudo resolvido.

Eles são virgens, ela de corpo e ele de coração. Ele é riquíssimo, jovem e belo. Sim, os príncipes ainda existem. E, como as Cinderelas também, esse cobiçado solteiro fica mesmerizado quando pousa os olhos na desmilinguida universitária que aparece para entrevistá-lo para um jornalzinho de faculdade. O que ocorre entre os dois é um desejo incontrolável à primeira vista, que logo se transforma em juras de amor.

Rapidamente a relação torna-se o negócio mais importante para ele e o projeto de vida prioritário para ela. Ele quer subjugar-lhe o corpo, mas acaba entregando-lhe a alma. Ela cobiça possuir a alma dele, mas entrega seu corpo com um prazer minuciosamente descrito. Apesar dos chicotes, cintos e palmatórias próprios da cena sadomasoquista, o livro difere das clássicas publicações do gênero ao dedicar grande espaço à exploração do corpo e dos prazeres femininos, dos quais Anastasia goza amarrada e amordaçada.


Pense bem nas suas dúvidas: você nunca sabe direito o que quer nem o que precisa para ser desejável. Além disso, sente-se ambivalente quanto aos prazeres da carne, nos quais sempre fantasia um tanto a mais do que realiza. Como as mulheres nunca tiveram um destino em aberto, o recato era imprescindível e as escolhas restritas, o leque dessas vacilações era para elas menos explícito. Com a liberdade, ganharam o benefício e o inferno das dúvidas. E. L. James tem a resposta para todos esses males: não enxergue cores, atenha-se ao cinza e viva uma vida Bombril.

01 de março de 2015 | N° 18088
L. F. VERISSIMO

Escavações

É conhecida a história dos arqueólogos que, depois de anos de escavação, descobriram o que parecia serem restos de uma civilização antiga, até então desconhecida. Estavam prestes a anunciar a descoberta que os consagraria, quando apareceu, no meio das ruínas, um paliteiro de plástico. E os arqueólogos ficaram no seguinte dilema: reconhecer que não tinham descoberto civilização desconhecida nenhuma ou revelar um fato espantoso, o de que a matéria plástica era muito mais antiga do que se supunha.

Há uma metáfora aí, em algum lugar. Seu significado talvez seja que no fim todas as sociedades são julgadas pelas suas exceções, pelos seus extremos e pelos seus detalhes, e a História e a sociologia estão sempre ameaçadas por dados incompletos.

Por exemplo: sempre se pensou que a população de Pompeia tivesse sido surpreendida pela chuva de cinzas do Vesúvio, e que a maioria morrera dormindo. Hoje se sabe que o Vesúvio entrou em erupção dias antes, tremores de terra e explosões anunciaram a catástrofe que viria e a população já abandonara a cidade condenada quando as cinzas a encobriram, para serem desencavadas anos depois.

Mas o mais impressionante em Pompeia são as estátuas dos mortos. Encheram de gesso os buracos deixados na cinza solidificada pelos cadáveres decompostos e cada espaço moldou um corpo branco, na posição em que estava na hora da sua morte.

Mas, se a maioria da população já tinha fugido das cinzas, isso significa que as tétricas estátuas brancas são de mortos excepcionais. São de céticos que duvidaram da catástrofe anunciada, curiosos que queriam ver como seria, aventureiros e megalomaníacos dispostos a desafiar a Natureza, suicidas, bêbados ou simplesmente distraídos. Enfim, são estátuas dos que ficaram.

Durante anos, todos os estudos e todas as teorias sobre Pompeia presumiram que os fantasmas conservados em gesso eram exemplos de habitantes comuns da cidade e do seu fim em comum, quando eram dos seus excêntricos. A amostragem, que incluía dos mais científicos aos mais burros, não representava a imensa gama que existia entre os dois extremos.


As novas revelações sobre o que realmente aconteceu em Pompeia naquele ano de 79 d.C. acabaram com mitos românticos, como o da suposta descoberta, sob as cinzas, de um casal abraçado, surpreendido pelas emanações do Vesúvio no ato do amor. Especulou-se muito sobre o que o casal estaria fazendo no fim, mas de uma coisa se pode ter certeza: o orgasmo, sob as cinzas ainda mornas do vulcão, foi maravilhoso.

27/02/2015 às 20:43
Reinaldo Azevedo

Análises políticas em um dos blogs mais acessados do Brasil

Dilma, a energia e o vento: ela não aprende nada nem esquece nada!

No dia em que se anuncia um reajuste médio na energia de 23,4% — 60% em um ano —, a presidente Dilma afirmou, durante a inauguração do Parque Eólico de Geribatu, que o aumento da tarifa é necessário, mas passageiro. E — ela nem aprende nada nem esquece nada — aproveitou para atacar o… governo FHC.

Afirmou:

“Quando a água falta no Brasil, e todo mundo tem que saber disso, aumenta o preço da energia sim, porque você passa a pagar por aquilo que não pagava, que é a água e o vento. Qualquer outra forma de energia tem que pagar. Ela funciona como uma espécie de reserva, que você só vai usar quando precisar. Nós estamos precisando. Então, eu quero explicar a vocês que os aumentos de preços da energia são passageiros.

Eles estão em função do fato de que o país enfrenta a maior falta de água dos últimos cem anos. Isso não significa que nós vamos ter qualquer problema sério ou mais sério na área de energia elétrica. Não iremos ter porque temos todo um sistema de segurança. Mas isso também não significa que vamos sair por aí jogando energia pela janela e não consumindo de forma racional”.

Ah, bom! Ao menos a governanta assumiu que pode haver alguns probleminhas, né? Fez alusão ao racionamento de 2001, afirmando que, naquele caso, faltavam redes de transmissão. É verdade. Hoje, falta é energia mesmo. Dilma prefere ignorar que, quando veio o apagão de 2001, o país vinha de um crescimento de 4,2% em 2000. Mesmo com o apagão, cresceu 1,4% em 2001 e 2,7% em 2002, ano em que o PSDB perdeu a eleição. Se a economia brasileira estivesse crescendo 1,4% hoje, a energia já teria ido para o pau.

Dilma afirmou ainda que o país enfrenta a pior seca em 100 anos. Na campanha eleitoral de há quatro meses, ela afirmou que o PSDB atribuir a crise hídrica em São Paulo à falta de chuva era conversa mole. Segundo a soberana, o que falta a seus adversários era planejamento.

“Na próxima terça-feira (…) vou ter o prazer de anunciar a mais forte redução de que se tem notícia, neste país, nas tarifas de energia elétrica dasindústrias e dos consumidores domésticos. A medida vai entrar em vigor no início de 2013. A partir daí todos os consumidores terão sua tarifa de energia elétrica reduzida, ou seja, sua conta de luz vai ficar mais barata. Os consumidores residenciais terão uma redução média de 16,2%. A redução para o setor produtivo vai chegar a 28%, porque neste setor os custos de distribuição são menores, já que opera na alta tensão.

Esta queda no custo da energia elétrica tornará o setor produtivo ainda mais competitivo. Os ganhos, sem dúvida, serão usados tanto para redução de preços para o consumidor brasileiro como para os produtos de exportação, o que vai abrir mais mercados, dentro e fora do país. A redução da tarifa de energia elétrica vai ajudar também, de forma especial, as indústrias que estejam em dificuldades, evitando as demissões de empregados.”

Encerro

Faz apenas dois anos e meio. Isso é que é um governo que sabe planejar! A propósito: a soberana anunciava ali o início de uma nova fase de desenvolvimento. Não deixa de ser. A nova fase é marcada por dois anos seguidos de recessão! Não pensem ser essa uma obra corriqueira.



28 de fevereiro de 2015 | N° 18087
CLÁUDIA LAITANO

Terror em série

Há o Estado Islâmico do mundo real, o grupo terrorista que se expande em poder e influência no Oriente Médio, e há o Estado Islâmico simbólico, produtor de conteúdo, dedicado a conquistar – no sentido de ocupar, mas também de aliciar – o imaginário ocidental.

O primeiro é a nova versão de um inimigo conhecido – fanáticos armados não são exatamente uma novidade na História. O segundo, em muitos aspectos, representa um novo tipo de ameaça. Para demonstrar sua força e celebrar uma visão de mundo que não faria feio no século 10, o EI tira proveito da forma como o Ocidente consome informação e entretenimento no século 21.

A estética dos seus vídeos de violência explícita, a regularidade com que são produzidos e a forma como rapidamente se espalham nos são assustadoramente familiares: o Estado Islâmico é o terrorismo com lógica de games e seriados. É Game of Thrones com vítimas de verdade. Não espanta que atraia tantos meninos e meninas sensíveis à fantasia.

Como em um seriado de sucesso, por mais que as mortes, a certa altura, se tornem previsíveis, sabemos que os roteiristas encontrarão um jeito de torná-las ainda mais brutais, gratuitas e inesperadas, de forma a manter sua audiência eletrizada e sintonizada – o que não é fácil diante da infinidade de ofertas de conteúdo que disputam sua atenção todos os dias.

Que toda essa selvageria produzida nos confins do Iraque e da Síria seja consumida, pela maior parte das pessoas, nas redes sociais, ou seja, embaralhada com notícias amenas, discussões sobre a verdadeira cor de um vestido e felicitações de aniversário, apenas potencializa a sensação de banalização da violência.

Como todo roteirista e fã de série sabe, às vezes é preciso surpreender, chocar de novas formas, impactar – do contrário, mesmo o espetáculo mais brutal pode cair na rotina. Em meio a decapitações, torturas e degradações humanas de todos os tipos, o Estado Islâmico encontrou tempo para destruir estátuas milenares – uma prática antiga, como a de queimar livros (o que eles também fizeram nesta semana), mas que sempre impressiona.


Destruir a História para instaurar a própria narrativa como a verdade absoluta sempre foi uma das táticas favoritas dos tiranos. A diferença é que em um mundo globalizado não é apenas um povo ou uma crença que é atingido, mas toda a Humanidade. De uma marretada só.

28 de fevereiro de 2015 | N° 18087
NÍLSON SOUZA

E AÍ, XARÁ?

Temos em comum o nome, a evidente timidez e a paixão inquebrantável pelo jornalismo – além do hábito, ironizado por alguns colegas, de levar lanche de casa para comer no bar da Redação. Nunca me ocorreu comentar com ele que somos filhos da nuvem. Não dessa virtual, que agora reúne todas as informações do mundo digital e pode ser acessada de qualquer parte do mundo real, desde que se tenha um teclado para abrir caminho e um monitor para visualizá-la.

Nossa nuvem é outra, a que inspirou nossos nomes. Segundo sua origem inglesa, Nílson (com ou sem acento) identifica um filho de Neil, derivação do anglo-saxão niadh, que significa campeão ou nuvem. Conhecendo-me e conhecendo-o, certamente ficamos com a segunda possibilidade, para fugir da arrogância da primeira.

Mas, na verdade, ele é um campeão de ética, de talento e de prêmios jornalísticos. Falo de Nilson Mariano, de quem tenho orgulho de ser tocaio e colega de ofício. Sempre que o encontro nos corredores da Redação, nas reuniões de trabalho ou mesmo na hora do lanche, lanço-lhe a saudação de praxe:

– E aí, xará?

Ele sempre responde com a gentileza que lhe é característica, mas raramente estende a conversa. É um homem reservado, discreto. Nesta semana, porém, para minha surpresa, alongou-se na resposta. Parou para me contar que está deixando o jornal e uma vida inteira de reportagens para encarar o que costumamos chamar, também ironicamente, de novos desafios. Meu mundo caiu. Meu simpático xará é um dos profissionais mais completos e competentes que conheci, do que são testemunhas os leitores de suas apreciadas reportagens e de seus livros.

Falamos, então, demoradamente sobre o pretérito perfeito de nossas existências, sobre as mudanças vertiginosas da nossa atividade e sobre os novos rumos da comunicação. Ele me disse, num misto de nostalgia antecipada e crença na sua escolha profissional:

– Nada tem sido tão prazeroso e gratificante na minha vida do que viajar para o interior do Interior, encontrar pessoas que nunca sonharam ver um jornalista, ouvi-las com atenção e depois relatar fielmente suas histórias.

Eis aí uma síntese perfeita da melhor profissão do mundo, conceito que nós, jornalistas, fazemos questão de creditar a García Márquez para não parecermos demasiado pretensiosos. Contar histórias – com paixão, responsabilidade e honestidade intelectual – é a nossa maneira de perseguir essa nuvem intangível chamada Verdade. Por isso conto aqui a história desta suave despedida.


Boa sorte, xará!

28 de fevereiro de 2015 | N° 18087
EDITORIAL ZH

O DESBLOQUEIO DO PAÍS

As interrupções de estradas continuam causando prejuízos irreparáveis à população, notadamente a setores da economia que trabalham com produtos perecíveis.

No dia em que a presidente Dilma Rousseff inaugurou o parque eólico de Geribatu, em Santa Vitória do Palmar, um dos eventos programados pelo governo para reverter a agenda negativa do país, o confronto entre forças policiais e caminhoneiros na cidade gaúcha de Três Cachoeiras acabou se impondo como fato principal no noticiário nacional ao lado do bloqueio da Via Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro. Mesmo com decisões judiciais e operações policiais, o protesto dos condutores de caminhões interrompeu o trânsito ontem em dezenas de rodovias de pelo menos sete Estados, incluindo Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

O momento de radicalismo é preocupante, agravado pela imprevisão do governo federal e por sua inaptidão para o diálogo. Surpreendido pelo movimento, o Palácio do Planalto tentou primeiro atribuir-lhe conotação política e, tão logo começou a negociar, precipitou-se em dizer que a situação estava controlada. Não está. As interrupções de estradas continuam causando prejuízos irreparáveis à população, notadamente a setores da economia que trabalham com produtos perecíveis, como hortifrutigranjeiros e leite.

Para sair do imobilismo, o governo precisa agir com energia e sensibilidade em duas frentes. Primeiro, tem que providenciar o desbloqueio imediato das rodovias de forma civilizada mas firme, tratando extremistas e desordeiros como devem ser tratados, para que os profissionais responsáveis possam decidir serenamente se querem ou não participar dos protestos. Ao mesmo tempo, tem que intensificar as negociações e oferecer aos caminhoneiros condições dignas de trabalho, já que a atividade ficou praticamente inviabilizada com o reajuste dos combustíveis, os pedágios caros e o baixo preço dos fretes.

Na verdade, o Planalto está sendo desafiado a desbloquear o país, não apenas desobstruindo estradas, mas também promovendo os ajustes econômicos necessários e fazendo as concessões possíveis a setores que precisam de ajuda.


No dia em que celebrou o vento de Santa Vitória do Palmar como fonte de energia limpa e barata para ajudar no combate à atual crise hídrica, a presidente Dilma evitou tocar nas outras mazelas que atormentam o país – a crise ética evidenciada pelo escândalo da Petrobras, a crise econômica evidenciada pela inflação e a crise política evidenciada pelo instável apoio parlamentar. Ainda assim, até mesmo os manifestantes que pedem a sua saída devem torcer para que ela acerte nas suas decisões, pois, como disse o filósofo Sêneca, se o comandante não sabe para onde ir, nenhum vento lhe será favorável.

28 de fevereiro de 2015 | N° 18087
DAVID COIMBRA

Uma casa de madeira

Ainda vou ter uma casa de madeira. Não um casarão, um sobrado: uma casinha de piso único, com sótão e porão, um pequeno jardim na frente e um corredor ao lado, que leve para o pátio nos fundos. É óbvio que nesse pátio vai haver um cachorro grande, de preferência um pastor alemão, que vou chamar de Kaiser. O Kaiser será um cachorro manso, mas imponente e disposto a mostrar os dentes de navalha para defender o dono, se necessário.

Falando em necessidades, é necessário que ao menos uma galinha cisque pelo quintal, para que ouça seu cacarejar durante as tardes. Uma tarde de sol, uma rede, um livro e, ao longe, o som da corneta do sorveteiro. Penso nisso e já sinto a preguiça morna a me amolentar os ombros.

Os sorveteiros ainda sopram suas cornetas nas tardes de verão? Se soprarem, darei uma nota amarrotada de 10 reais que tenho no bolso para meu filho comprar um de tangerina para mim e um de uva para ele. Será que a Marcinha vai querer também? Se quiser, será Chicabon. Será que 10 reais ainda compram três picolés?

Talvez monte uma biblioteca num puxadinho atrás da casa, para lá ficar escrevendo, lendo e conversando com os amigos. Talvez faça um canteiro em que plante tomates e limões. Eu tinha um canteiro quando morava no Parque Minuano, na zona norte profunda de Porto Alegre. Minha mãe dizia que tenho mão boa para plantar. Ah, e talvez, nos dias amenos das primaveras e dos outonos, possa tomar café sob a sombra da parreira do quintal.

Há uma coisa que quero muito fazer, na minha casa de madeira: tirar a sesta. Meia hora depois do almoço, não mais. Vou deixar o rádio ligado na Gaúcha, para ouvir o Sala de Redação bem baixinho. Lembro que meu avô fazia isso. Eram o Foguinho, o Cid Pinheiro Cabral e o Cândido Norberto que falavam no Sala, naquele tempo, e eu gostava quando o Foguinho analisava um jogador pela foto que saíra no jornal.

O cômodo mais importante de uma casa de madeira é a cozinha. Tem de ser espaçosa, aberta como as cozinhas dos americanos, e precisa estar sempre em atividade. Numa cozinha de casa de madeira, assam-se pães e bolos. O cheiro de pão saído do forno e de café quente há de se espalhar pela minha casa de madeira e fazer a gente suspirar de leve. Então, nos reuniremos em torno da mesa, sorriremos um para o outro e veremos a manteiga derretendo na fatia de pão recém-cortada.


Não preciso de Porsches que encantam juízes de Direito. Não. Um cachorro no quintal, o cheiro de pão quente e sorrisos de afeto, é só do que preciso. Um dia, ainda junto tudo isso na minha casa de madeira.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Jaime Cimenti

Fla-Flu federal!

Sou do tempo em que Flamengo x Fluminense, o Fla-Flu, era o "clássico das multidões". Numa partida, o público beirou 200 mil, nos anos 1960. Agora, sinto que o Brasil parece estar, politicamente, no Maraca, num Fla-Flu federal, com dois times enormes digladiando. Briga de cachorros gigantes. Não digo que estamos num Gre-nal federal, pois aí vão dizer que é bairrismo gaúcho. De mais a mais, Gre-nal é um clássico de nível mundial. Nos últimos anos, com resultado final previsível, como se sabe.

Pois é, o Brasil está virado num grande Rio Grande, tipo assim, dividido. Nosso Fla-Flu político federal tem final ainda incerto, nesse País onde até a manchete de ontem é imprevisível.

Estou na arquibancada, assistindo ao jogo, torcendo, sofrendo, dando palpites e me metendo a técnico como todo mundo, propondo esquemas táticos, escalações e jogadas. Como ocupo este espaço público, devo e quero contribuir com algo positivo. Essa semana não me peçam para falar sobre dietas, shoppings, entrega do Oscar ou comportamento social na era digital.

A gente sabe que fora e dentro do campo está complicado conversar, mas é preciso. É preciso calma nessa hora. O jogo vai se desenvolvendo, a bola rolando, as jogadas se sucedendo para a direita, para a esquerda, para o meio, para a frente e para trás, se é que ainda existem essas classificações. Um gol aqui, outro ali, a bola voltando para o centro, como sempre. O juiz vai apitando, decidindo, os bandeirinhas se empinam, levantam suas bandeirinhas e a coisa vai seguindo.

Tem jogadores de um time que estão jogando no time do adversário, tem jogadores de outros times fora da dupla Fla-Flu que jogam no clássico, torcidas para cá e para lá, democraticamente. Técnicos vão e vêm. Tem torcedores querendo anulação do jogo, de olho em lances futuros. Quem disse que futebol e política são simples? Jogos da vida, intermináveis.

Resta torcer para o melhor ganhar, para que as regras sejam obedecidas. Nada de gol de mão, mesmo que seja a mão de Deus. É pedir para Nossa Senhora Aparecida abençoar este País e fazer as coisas se resolverem do modo o mais pacífico possível. Violência e radicalismo não devem interessar a ninguém. Se interessam para alguém, esse alguém certamente não nos interessa. Nossa população segue pacífica e busca caminhos institucionais para o Brasil.

Tomara que não haja quebra-quebra no final da partida, que não haja conflitos mortais entre torcedores. Desde o primeiro dia, os acadêmicos de Direito aprendem que não existe sociedade sem leis, ordem e Justiça. Não nos interessa a barbárie. Nossa democracia é jovem. Temos muito o que aprender. Todos nós. Eleitores e eleitos. Precisamos de uma federação que melhore a situação da maioria dos municípios e estados, que vivem de pires na mão na capital federal. Precisamos de união em torno dos interesses verdadeiramente nacionais. Sabemos que a desunião e as divisões têm causado prejuízos.

Mesmo antes do último apito e de eventuais manifestações da CBF e da Fifa, vamos tentar dialogar ao máximo, unir esforços. Com certeza é o melhor para todos. Se não for assim, os de fora tomam conta. Isso não queremos.

a propósito...

Claro que o humor e as piadas, que geralmente nascem em momentos difíceis, são essenciais para a vida e para nós, brasileiros, em horas complicadas como essa. Mas penso que levar tudo na brincadeira e exagerar no riso não é o melhor. É preciso procurar limites. Na vida familiar, nos bares, restaurantes, praças, nas redes sociais, shoppings e outros locais, não custa pensar duas vezes antes de falar ou agir. O respeito é bom, as pessoas gostam e segue fortalecendo parentescos, amizades e relações sociais e profissionais. Sei que parece romântico ou ingênuo falar assim num mundo de egos tão inflados, mas é isso que eu gostaria de dizer hoje.


DIVULGAÇÃO/JC

Primeira biografia de Tancredo Neves

Em momento mais do que adequado será lançada, dia 11 de março, no Rio de Janeiro, a primeira grande biografia do falecido presidente Tancredo Neves (1910-1985). Tancredo Neves: A noite do destino (868 páginas, R$ 80,00, Editora Civilização Brasileira) é de autoria do jornalista José Augusto Ribeiro, que foi editor-chefe do jornal O Globo, comentarista político e chefe de redação da Rede Bandeirantes de Televisão e assessor de imprensa de Tancredo na campanha de 1984 e de Leonel Brizola na campanha de 1994. José Augusto escreveu os livros De Tiradentes a Tancredo Neves: uma história das constituições brasileiras; A Era Vargas e Jânio Quadros: o romance da renúncia.

O alentado volume, de quase 900 páginas, é fruto de mais de 15 anos de pesquisa em arquivos pessoais de Tancredo, fotos, entrevistas exclusivas e fatos ainda inéditos sobre o homem que foi considerado um dos mais importantes brasileiros do século XX. Em 19 de abril, faz 30 anos que Tancredo Neves morreu. Ele foi eleito para restaurar a democracia no Brasil e não assumiu o cargo, vitimado por doença que obrigou-o a ser hospitalizado.

O livro é longo, mas a linguagem fluente e os capítulos breves tornam a leitura um prazer, além de propiciar aos leitores um conhecimento profundo e detalhado sobre a vida do líder político, o primeiro presidente eleito após o regime militar.

Aos 43 anos, Tancredo foi ministro da Justiça de Getúlio Vargas e enfrentou, com enorme coragem, a tempestade política de 1954. Tancredo foi primeiro-ministro na experiência parlamentarista de 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, cujo objetivo era tornar possível a posse do vice, João Goulart, na presidência. Ele, então, restabeleceu a legalidade constitucional e as liberdades públicas no País e teve a ousadia de fechar a última base militar estrangeira no Brasil, em Fernando de Noronha.

Em 1984, Tancredo foi a escolha indiscutível das oposições para disputar a presidência da República depois da frustrante derrota da Emenda Dante de Oliveira, que restabeleceria as eleições diretas. A eleição indireta se tornou praticamente uma eleição direta, envolvendo o País.


Esses três episódios e tantas dezenas de outros revelam como Tancredo era bem-humorado, de bem com a vida, mas como estava sempre atento e preocupado com o Brasil e com os brasileiros. Homem de diálogo, sempre entendeu que só com ele se fazia a democracia. Tancredo se sacrificou pelo Brasil, pedindo aos médicos para que fizessem uma cirurgia somente em 17 de março, dois dias da posse, ou, então, na tarde da posse, 15 de março. 

O destino foi duro com o Brasil e com os brasileiros, mas ficam o exemplo, a mensagem e os sorrisos de um homem incansável, que dizia que para descansar teria a eternidade. Um homem que inspirou Milton Nascimento a compor a linda canção Coração de estudante.

27 de fevereiro de 2015 | N° 18086
EDUCAÇÃO ADAPTAÇÃO À NOVA ESCOLA

QUANDO CHEGA A HORA DE MUDAR

VOLTA ÀS AULAS é um desafio maior para crianças e adolescentes que mudam de colégio. Pais e escola têm de dar atenção especial ao aluno para que a troca ocorra com mais tranquilidade
Prestes a completar a primeira semana de aula em uma nova escola, Mariana Coutinho Raggio, 11 anos, desabafa:

– Está sendo um pouco difícil me acostumar com um colégio gigante, mas está legal. Sentei sozinha nos primeiros dias, mas uma colega perguntou se eu queria sentar com ela. Agora já somos amigas.

No caminho do Colégio Marista Rosário para o primeiro dia de aula, ela confessou ao pai, o professor Juan Pablo Raggio, 49 anos, que sentia um misto de nervosismo e expectativa. Acostumada a estudar em uma instituição pequena, Mariana demorou a aceitar a ideia. Além da nova escola, ela agora ingressa no 6º ano do Ensino Fundamental, o primeiro em que as disciplinas são separadas, e os professores, diferentes para cada conteúdo.

Fora a ansiedade e a expectativa comuns à retomada das aulas, crianças e adolescentes que trocam de colégio têm um desafio a mais no início do ano letivo. Novos horários, colegas e regras exigem uma adaptação que nem sempre é fácil. Para que a mudança ocorra com tranquilidade, é essencial que os pais e a escola deem atenção especial ao aluno e o acompanhem de perto.

– A primeira situação é expor ao filho quais são os motivos para a troca de escola, pois é ele quem vivenciará essa mudança – explica a professora do curso de graduação em Pedagogia da Unisinos, Rejane Klein.

A troca impacta porque o ambiente escolar é o primeiro, depois do familiar, onde normalmente se estabelecem laços afetivos e relacionamentos pessoais. Conforme a psicanalista Ana Cristina Pandolfo, da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), ajudar o estudante a compreender as sensações decorrentes das novas experiências, como perdas, tristezas e ganhos, pode facilitar a criação do vínculo com a nova escola.

– Vivemos em uma época em que não se lida bem com expressões de tristeza. Por isso, tendemos a atropelar processos naturais. A ansiedade não deve ser controlada, mas considerada como expressão de vivências excessivas para a criança.

TRISTEZA NO PERÍODO QUE ANTECEDEU TROCA

Durante os primeiros meses de adaptação, a confiança dos familiares na nova escola deve ficar evidente, alerta Gilca Kortmann, vice- presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia. Se, mesmo assim, a criança quiser voltar para o colégio antigo, é preciso ficar claro que o poder de decisão, neste caso, é dos pais. No caso de Mariana, os meses que antecederam a mudança foram de tristeza para a menina. E de pulso firme para os pais.

– Ela ficou bem chateada porque ia perder os colegas e por não saber muito bem o que estava por vir. Na última semana de aulas do ano passado, entrou em um período mais entristecido, mais reflexiva. Tivemos de nos manter firmes e, com muitas conversas, conseguimos mostrar que esta era a melhor decisão – lembra a mãe, a enfermeira Kátia Coutinho, 47 anos.

Para a menina entender as mudanças, as conversas começaram em outubro. Hoje, com uma grade escolar já organizada, Mariana se mostra motivada e faz questão de separar cadernos e livros – o material escolar foi todo personalizado por mãe e filha – na noite anterior a cada novo dia de aula.

– Agora já estou me acostumando, já parei de ficar nervosa. Acho que vai ser legal, e vou até falar para as minhas amigas que a mudança não é tão sofrida assim – diz a menina.


jaqueline.sordi@zerohora.com.br

27 de fevereiro de 2015 | N° 18086
DAVID COIMBRA

No Brasil tem pastel

Acho que não existe pastel nos Estados Unidos. Isso me deixa um pouco triste. Viver num país sem pastel.

É verdade que, mesmo sob o sol do Brasil, é difícil encontrar um bom pastel. Ou eles são muito secos ou muito oleosos ou têm pouco recheio ou o recheio é simplesmente ruim. Por isso, evito comer pastel em bares e assemelhados.

Falando em assemelhados, aí está algo intrigante: o que é um assemelhado? Um lugar que é quase um bar, mas ainda não chegou lá? Nunca ouvi alguém dizer: “Estou indo ali no assemelhado da esquina, tomar uma gelada”. Eu, se tivesse um bar, colocaria o nome de Bar Assemelhado.

Mas voltemos ao nosso pastel. Os melhores pastéis são os que a minha mãe faz, mas comida de mãe não conta – comida de mãe sempre é a melhor do mundo.

No antigo refeitório da Zero Hora, quando tinha pastel, dava-se uma comoção. Lembro que o antigo editor de dupla Gre-Nal, o Renato Bertuol Barros, comia sete pastéis num único prato, junto com arroz e feijão, o que é uma combinação deliciosa.

Sete pastéis...

Uma vez, eu e meu amigo Chico Camboim estávamos em São Paulo, em deslocamento para o Rio. Íamos de ônibus, que os tempos eram de muita alegria e pouco dinheiro. Paramos num assemelhado vulgar, no mais vulgar dos endereços: na frente da rodoviária. O dono era um japonês. Japoneses são especialistas em pastel, então tive a inspiração:

– Que tal dois pastéis de carne e uma geladinha, Chico?

O Chico topou e, cinco minutos depois, lá estava aquele pastel fumegante na minha frente, um pastel inesquecível, o melhor que já provei em qualquer bar ou assemelhado, e só não diria que foi um pastel inefável porque seria exagero, em se tratando de um humilde pastel de japonês paulista.

O certo é que nós nos repimpamos com nossos pastéis e pedimos outros e a cerveja estava geladíssima, como jamais se encontra no lado de cima do Equador.


Era um rasteiro bar de japonês em frente à rodoviária, nós só tínhamos umas poucas notas amassadas nos bolsos, mas comíamos com gosto, comíamos rindo um para o outro, e eram risos de amizade e brindávamos com nossos copos de cerveja gelada e ríamos de novo, felizes com um pastel, apenas com um pastel, e com a vida. Ah, os americanos podem ter tudo o que o dinheiro compra, mas eles não têm pastel.

27 de fevereiro de 2015 | N° 18086
MOISÉS MENDES

Pobre Bob

Nada pode ser pior para uma boa ideia do que ganhar adesões de baixa qualidade que acabem por torná-la medíocre. Li esta frase há muito tempo num artigo de Roberto Campos.

Bob Fields, gênio do conservadorismo nacional, ficaria constrangido hoje com a qualidade de alguns adesistas, como os que embarcaram na mobilização pelo impeachment.

A última grande ideia da direita nasceu antes das eleições, prosperou por algum tempo, mas foi sendo depreciada pelos que a desqualificam. Você, que já entrou em muitas frias por simpatizar com ideias que depois teriam a adesão de alguém como o Bolsonaro, já pensou que o movimento do impeachment foi iniciado por ele mesmo, pelo Bolsonaro?

Você, que foi à luta nas passeatas de junho de 2013, ficou sabendo depois que desceu a João Pessoa ao lado de fascistas, neonazistas e black blocs. Você, que preza tanto a democracia, estava ao lado daqueles caras estranhos, que gritavam contra tudo e contra todos.

Você estava no lugar certo. As passeatas de 2013 acordaram o Brasil, mas foram ofendidas pelas adesões de baixa qualidade. Fascistas, à esquerda e à direita, é que estavam no lugar errado.

Eles deveriam fazer fuzarcas próprias, como os black blocs tentaram no Rio e em São Paulo e fracassaram. Quem não preza a democracia não pode se utilizar dela para desonrá-la.

Mas eles estão aí, misturados, quem sabe, até ao movimento dos caminhoneiros. E se infiltram entre descontentes da elite paulistana, como aconteceu na semana passada numa lancheria do Hospital Albert Einstein, quando um grupo chamou o ex-ministro Guido Mantega de fdp e mandou que ele saísse dali e fosse procurar o SUS.

Uma médica e suas seguidoras acabam por depreciar uma ira que ainda depende de qualidade para se transformar em gesto político.

As mulheres que berravam no hospital desceram ao nível de um Lobão, de um Bolsonaro, de um Feliciano e de outros menos famosos.

Você acha que aquele seu amigo que leva a sério a tese do impeachment iria sentir-se bem no bloco das vaiadoras do Albert Einstein? Você entregaria suas dores aos cuidados de uma delas?


Eu faço o que posso pela memória literária de Roberto Campos. Mas como caiu a qualidade das atitudes de quem está à direita da direita no Brasil.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

mariliz pereira jorge

Case com seu melhor amigo
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Eu nunca sabia o que passava na cabeça dele. Se ele estava quieto porque estava quieto. Se estava quieto porque estava aborrecido. Se estava quieto porque estava de saco cheio. De mim. Sofria em silêncio. Eu e minhas unhas. Respirava aliviada quando ele falava. E a relação respirava de novo.

Não tinha certeza se ele era feliz no trabalho, feliz na vida, feliz comigo. Se pensava na ex-namorada, se sonhava com outras mulheres, se flertava por aí. Tinha dores de barriga se o telefone tocava em vão. E engolia a dor de barriga para não ser a chata que pergunta por que o telefone tocou em vão.

Não foi apenas uma vez. Namorei alguns estranhos. Porque eram, enfim, estranhos. Homens com quem eu dividia a vida, a rotina, a mesa do café, as sacolas do supermercado, o controle remoto, a louça suja, a panela de brigadeiro, as festas, a mesa no restaurante, o braço da poltrona do cinema. Menos a intimidade.

Eu conhecia de cor a sua nudez. A marca de nascença, a pinta na bunda, a cicatriz no joelho, a mecha branca no cabelo. Seus tiques. A mexida nos óculos, a levantada de ombro, a ajeitada no quadril com as duas mãos.

Sabia o número do CPF, o tamanho do sapato, a pizza favorita, se ele preferia 'chicken or pasta', se dormia de ladinho ou de bruços. Sabia tudo. Menos o que passava em sua cabeça.

A gente acredita que intimidade é dizer eu te amo, compartilhar a escova de dente, ter conta conjunta, saber a senha do celular. Durante muito tempo me convenci que as relações eram assim. Que intimidade tem limite.

Que proximidade é utopia. Que ninguém precisa saber tudo do outro. Que pra dar certo precisa de amor, tesão e um saco de paciência. Só.
A gente acha que sabe bastante sobre tudo isso. Amor. Tesão. Saco de paciência. Até descobrir que intimidade não tem nada a ver com contas para pagar, senhas ou orgasmos múltiplos. Nada disso tem importância.

Enquanto a gente procura a alma gêmea, esquece de olhar o que importa. Quer alguém que goste de comida tailandesa, filmes iranianos e retiros espirituais. Encontra a tampa da panela. E meses depois, ou anos depois, se dá conta de que passou tempo demais tentando encaixar aquela tampa perfeita em sua panela amassada. Passou tempo demais dividindo intimidade de mentira com um estranho de verdade.

Percebi que não sabia nada daquela pessoa com quem eu dividia tudo, a gente fala.

Descobri na marra que amor só dá certo quando a intimidade é mais complexa - e ao mesmo tempo mais simples - que a trama de lençóis egípcios de 1800 fios. Difícil não é aprender a gostar de filme iraniano, mas baixar a guarda e se despir emocionalmente.

Os silêncios agora confortam. Intimidade verdadeira traz paz, segurança e confiança. Não preciso saber o que o outro pensa para saber que só pensa as melhores coisas para nós dois. O que temos um com o outro é mais do que o compromisso de comprar um sofá novo ou financiar um apartamento.

Pra ele nada do que eu sinto é frescura. Nenhum dos meus medos são minimizados. Falo o que penso. Muitas vezes nem preciso falar. Sou o que sou. Muitas vezes, insuportável. Ele está ali, naquela camada da intimidade em que somos insuportáveis e que bem pouca gente aguenta. Naquela camada em que somos insuportavelmente de verdade.

Foi nesse nível de intimidade que entendi o que é ter alguém que seja amor, amante, parceiro, mas principalmente amigo. "Homens são extremamente leais aos seus amigos. Casais que são amigos têm relações sólidas e transparentes porque são baseadas na lealdade. A mulher que é a melhor amiga do seu parceiro acertou na Mega-Sena", disse meu personal doctor Freud.

Quem mesmo precisa de alma gêmea, quando pode passar o resto da vida com o seu melhor amigo, melhor amor, melhor tudo?! A única parte ruim - claro, tudo tem uma parte ruim - é que quando a gente briga, não posso ligar pro meu melhor amigo pra reclamar dele.