domingo, 31 de março de 2013





Feliz Páscoa!

““Páscoa é dizer sim ao amor e a vida;é investir
na fraternidade, é lutar por um mundo melhor, é vivenciar
a solidariedade.”
By Keyla



FERREIRA GULLAR

Tentativa de compreensão

Esse revolucionarismo retardado, na maioria dos países, foi uma fantasia passageira

Talvez que, para melhor entender o atual neopopulismo que chegou ao governo de alguns países latino-americanos, convenha lembrar o que ocorreu antes, logo após a Revolução Cubana, de 1959.

A tomada do poder pelos guerrilheiros de Fidel Castro levou alguns setores da esquerda latino-americana a embarcar na aventura da luta armada, de desastrosas consequências. Os Estados Unidos, que haviam aprendido a lição cubana, trataram de induzir os militares da região a substituir governos eleitos por ditaduras militares.

Nesse quadro, a exceção foi a chegada ao poder, pelo voto, de um partido de esquerda, elegendo Salvador Allende, no Chile, com o apoio da Democracia Cristã, que dele se afastou quando o viu refém da extrema esquerda.

O resultado disso foi o que se conhece: Allende foi deposto e morto, dando lugar à ditadura de Augusto Pinochet. Todos os movimentos guerrilheiros foram sistematicamente dizimados nos diversos países onde surgiram, e com eles a esquerda moderada.

As ditaduras militares, durante décadas, lançando mão da tortura e eliminação física dos adversários, tornaram inviável a vida democrática nesses países. Mas se desgastaram e tiveram que, finalmente, devolver o poder aos civis.

Em cada país isso ocorreu em momentos diversos e com características próprias. No Brasil, por exemplo, essa passagem se fez mediante um acordo que resultou em anistia geral e irrestrita, o que, sem dúvida, facilitou a reimplantação do regime democrático.

Não obstante, aqui como noutros países, esse retorno à democracia não significou o abandono, por todos, dos propósitos revolucionários.

Em alguns deles, os antigos guerrilheiros se reorganizaram em partidos que, implícita ou explicitamente, ainda que disputando eleições, visavam a implantação do regime socialista a que, antes, tentaram alcançar pelas armas.

Esse é um fenômeno curioso, especialmente porque se manteve mesmo após a derrocada do sistema socialista mundial e quando, com o fim da União Soviética, o regime cubano entrou em visível decadência e passou a fazer concessões ao capital norte-americano, que, então, voltou a explorar a hotelaria e o turismo, o que, para os revolucionários de 59, havia transformado Cuba num prostíbulo.

Mas esse revolucionarismo retardado, na maioria dos países, foi uma fantasia passageira, uma vez que, na disputa eleitoral, ficou provado que a maioria da opinião pública rejeitava as palavras de ordem radicais.

No Brasil, após várias derrotas, Lula exigiu que o PT abrisse mão do radicalismo, ou ele não se candidataria mais. Sem outra alternativa, o partido o atendeu e publicou uma Carta ao Povo Brasileiro, em que abria mão do revolucionarismo de palavra e, graças a isso, conseguiu ganhar as eleições de 2002.

Mas não parou aí, pois, para governar, Lula teve que aliar-se até com os evangélicos, numa total negação de seus princípios ideológicos. Claro que, para aparentar fidelidade a suas origens e satisfazer discordâncias internas, estatizou tudo o que pode, enquanto usava o dinheiro público, por meio do BNDES, para financiar grandes empresas privadas.

Esse é o dilema dos neopopulistas latino-americanos: usam discurso de esquerda e governam fazendo acordos e concessões que sempre condenaram. No discurso de Hugo Chávez, por exemplo, os Estados Unidos apareciam como o capeta, mas é para eles que a Venezuela vende quase todo o seu petróleo.

Sei que é impossível fazer política sem fazer concessões. Não é isso que critico, portanto. O que pretendo mostrar é como a esquerda, que se dizia radicalmente comprometida com os princípios anticapitalistas, ao perceber a inviabilidade de seu projeto ideológico, converteu-se, na prática, em seu contrário, mantendo, não obstante, o mesmo discurso de antes.

O mais patético exemplo disso é mesmo o chavismo, que, agora sem o Chávez, deve tomar um rumo imprevisível.

É certo, também, que o neopopulismo, valendo-se do assistencialismo e do discurso esquerdista, inviabilizou a esquerda moderada, que ficou sem discurso. O Brasil é exemplo disso. Lula se apropriou dos programas sociais e econômicos do governo anterior, contra os quais lutara ferozmente, e ainda os qualificou de herança maldita.


DANUZA LEÃO

O assunto do dia

Assim é essa PEC; imperfeita, e dando pânico de contratar uma nova funcionária

Quem sempre teve uma relação correta com sua empregada está tranquilo. Afinal, férias, 13º, INSS, são coisas que nem precisariam de lei para existir, e além de serem justas, fazem com que as relações entre empregada/empregador sejam amenas e pacíficas, o que torna a vida melhor para todos.

Mas nenhuma lei é perfeita, vide a proibição de dirigir depois de beber; se é possível se recusar a fazer o teste, que lei é essa?

Uma das coisas mal resolvidas é a carga horária. A ideia é que sejam até 44 horas semanais, praticamente nove horas de trabalho de segunda a sexta, o que é demais para qualquer mortal, já que esse trabalho é, na maior parte das vezes, físico, e descansar uma hora, no meio do expediente, como, onde? Na sala, vendo TV?

Por outro lado, não há quem precise de uma doméstica tantas horas seguidas, a não ser uma família com pai, mãe e quatro filhos, em que ninguém arruma sua cama, as roupas são largadas pelo chão, cada um almoça e janta na hora que quer, e aí nem as nove horas diárias vão ser suficientes. Já pensou, explicar aos adolescentes -e seus amigos, já que eles só andam em turma- que não dá para pedir vários lanchinhos várias vezes por dia?

Por tudo isso e mais alguma coisa, acho que esqueceram de falar, nessa nova lei, da remuneração por hora de trabalho. Afinal, o horário de uma diarista varia: existem as que trabalham duas horas, três, quatro ou cinco -e outras, nove.

Os que moram em apartamentos grandes vão precisar de uma empregada em tempo integral e vão pagar por isso; mas para quem vive num quarto e sala, duas horas de trabalho, duas vezes por semana, são mais do que suficientes.

É claro que o preço para duas horas não é o mesmo que para nove, e quem tem um emprego de duas horas, duas vezes por semana, pode perfeitamente ter mais dois ou três (empregos).

E mais: se o empregador tiver que pagar auxílio-creche, auxílio-colégio, salário família e estabilidade em caso de gravidez, então só sendo milionário para poder ter uma empregada. Aliás, só pra saber: se for estipulado o preço da hora de trabalho, o preço vai ser o mesmo para quem mora em Caxias e o quem tem uma cobertura com piscina na Delfim Moreira? Só pra saber.

Tenho passado as noites em claro, apavorada, já que sou totalmente dependente de uma ajuda doméstica. Já tive vários tipos de vida, desde morar em apartamento grande e ter três empregadas, a um pequeno conjugado onde alguém vinha uma vez por semana dar aquele toque de talento que Deus não me deu.

Que felicidade, entrar numa casa, seja ela imensa ou mínima, e sentir que por ali passou uma abençoada mão de fada. Eu troco essa ajuda por qualquer vestido, qualquer carro, qualquer viagem, qualquer joia, porque para mim esse é o maior dos luxos: uma casa bem arrumada e cheirosa.

E espero que as novas leis me permitam, sempre, pagar o que merece a dona desse talento, que para mim vale ouro. Mas a partir de agora vou prestar atenção e contratar mães de filhos já crescidos, até porque em qualquer lugar do mundo a obrigação de dar creche e colégio é do governo.

Assim é essa PEC; imperfeita, e dando pânico de contratar uma nova funcionária. E se não der certo? Demitir vai sair tão caro que trabalhar como arrumadeira será praticamente ter estabilidade no emprego, como os funcionários públicos; e demissão, praticamente, só por justa causa.

Aliás, o que é que caracteriza a justa causa? As empregadoras não sabem, mas pergunte a qualquer candidata a um emprego doméstico; todas elas sabem, na ponta da língua, o que não podem fazer, para não correrem o risco de uma justa causa.

É curioso o mundo moderno: um marido pode ser dispensado por incompatibilidade de gênios, e uma empregada doméstica não.

CARLOS HEITOR CONY

'Urbi et orbi'

RIO DE JANEIRO - Apesar da idade, que é provecta, mas não necessariamente sábia, ainda não me decidi se sou presidencialista ou parlamentarista na questão de regime de governo. Aliás, e para ser sincero, não somente nessa questão, mas em quase todas as outras continuo sem saber se sou isso ou aquilo -e não perco o sono nem o rebolado por causa disso.

Este preâmbulo não é para falar mal de dona Dilma, apenas para registrar que não compreendo como ela tem disposição para estar em tantos lugares e circunstâncias diversas e até contraditórias.

Devem ser os ossos do ofício que a obrigam a estar em Roma para cumprimentar o novo papa, em Petrópolis para a missa em homenagem às vítimas da enchente, não sei onde para a reunião com os Brics. Não acompanho a agenda miúda de suas ocupações oficiais e pessoais, mas é fantástica a ubiquidade com que ela se movimenta "urbi et orbi" -para lembrar a sua presença no Vaticano, onde compareceu com uma comitiva que se marcou pelas despesas e pela cafonice.

Como todo mundo sabe, sua prioridade é a sucessão de si mesma, aliás, o universo político só pensa nisso, o resto é a rotina dos atos e fatos oficiais, distribuídos em 39 ministérios e bilhões de entrevistas e declarações óbvias de pesar ou júbilo conforme as circunstâncias.

Não se trata de uma rainha da Inglaterra, mas antes fosse. Teria tempo para cumprir a agenda protocolar, consolar os aflitos e criticar os corruptos. Presidente e presidencialista de carteirinha, ela se obriga a desempenhar as duas funções da maneira como pode -e louvo sua saúde e disposição.

Mas vejo que o PAC parece que acabou, a inflação continua ameaçando e uma grande obra, como a transposição do São Francisco, ficou como as Guerras Púnicas: um verbete do passado.

ELIANE CANTANHÊDE

De Obama a Aécio

BRASÍLIA - A partir da Páscoa, tende a acontecer uma reviravolta, ao menos uma inversão, nas expectativas das candidaturas de oposição.

Até aqui, Eduardo Campos (PSB), capaz de minar a reeleição de Dilma "por dentro" e saudado como "o novo", ocupa espaços na mídia, angaria simpatias na base de Dilma e nos aliados do PSDB. Agora, começa a sentir o gosto, nem sempre doce, do excesso de exposição.

O PT já martela que ele é "traidor", por ser da base e lançar-se contra Dilma. Uma coluna daqui questiona a legitimidade de colocar-se na oposição. Outra dali cutuca seu estilo, não tão moderninho assim, em Pernambuco. Mais virá.

De outro lado, Aécio Neves parecia imobilizado na teia de egos e disputas do seu partido, excessivamente voltado para dentro e para debates que não fazem nem cosquinha no eleitorado. O PSDB fala para seu próprio eleitor, não para o eleitorado que pode ganhar a mais. Isso também começa a mudar.

Quando os tucanos se reúnem nos plenários solenes e sob o ar condicionado do Congresso para discutir o desmanche da Petrobras, isso me faz lembrar a frase lapidar do mestre Elio Gaspari: "O tucanato continua encantado pela crença segundo a qual, se uma pessoa ficar com duas vezes mais raiva do PT, terá direito a dois votos na eleição".

Com a população embalada por um "estado de felicidade", com emprego, renda, bolsas e cotas, o eleitorado está tão fascinado por Dilma quanto esteve por Lula. Mas, se o PT teve cerca de 43% dos votos totais em 2002, 2006 e 2010, 57% não cairão por gravidade no colo de Dilma e oferecem-se à conquista.

É para fazer a ponte com eles que o PSDB está trazendo dos Estados Unidos o estrategista David Axelrod, arquiteto da campanha do democrata Barack Obama.

Dilma é hoje uma candidata pronta, e Marina só precisa de ajustes. Os novatos Aécio e Campos têm de ser "construídos". Senão, a casa cai.

sábado, 30 de março de 2013



31 de março de 2013 | N° 17388
MARTHA MEDEIROS

Na parede

Existem diversas maneiras de se conhecer uma pessoa, não só através do que ela diz, mas também através de seus gostos, atitudes, preferências, escolhas. Por exemplo, uma das maneiras de sermos traduzidos é avaliarem o que penduramos na parede. O que as suas paredes revelam sobre você?

Lembro do quarto da minha infância. Na parede atrás da cama havia o quadro de uma menininha de tranças, com as palmas das mãos unidas, rezando ao lado do seu gatinho. Não era escolha minha, mas eu não desgostava, era uma imagem que me transmitia conforto e segurança. Aí veio a adolescência, e a menininha rezando foi trocada por um pôster do David Cassidy. Começava ali a manifestação pessoal das minhas transformações internas.

Assim que minhas filhas tiveram seus próprios quartos, permiti que usassem as paredes como preferissem. A casa é dos pais, mas o quarto é território de livre expressão, onde seu ocupante começa a criar o quebra-cabeça da sua identidade.

Circulam por suas paredes cartazes de shows, fotos de amigos, desenhos de próprio punho, cartões-postais. Aliás, cartões-postais é uma paixão familiar: no meu escritório, emoldurei dezenas deles reunidos.

Nenhum com imagens de cidades, nada de paisagens convencionais – são cartões artísticos que trazem propagandas de filmes, fotos em preto e branco, estímulos visuais os mais variados. Cada um desses cartões reflete as coisas que amo: cinema, música, poesia, humor, erotismo, cotidiano. Um caleidoscópio estimulante e que me situa – olho para eles e me sinto em casa, mesmo.

Pessoas usam as paredes para pendurar calendários, relógios, fotos de família, espelhos, objetos trazidos de viagens, mandalas, telas de seus pintores preferidos, imagens ligadas ao esporte, tudo que traga substância e prazer para conduzir os dias.

Ou mantém as paredes nuas, que também é uma forma de expressão – o minimalismo comunica tanto quanto. A parede é o antepassado do Facebook, só que é uma página mais íntima e acolhedora: apenas têm acesso aqueles que fazem parte do nosso universo real, off-line.

Desperdício é quando a parede é utilizada com um fim apenas decorativo, sem nenhuma sintonia com os sentimentos e com a identidade do morador. O uso das paredes de forma protocolar, burocrática, torna a casa mais triste do que alegre, por total falta de inspiração do proprietário.

Use suas paredes. Troque as cores de vez em quando. Mude os quadros de lugar. Crie os seus. Invente moda. Acabo de encomendar com o superdiretor de arte Moisés Bettim uma tela que traz Woody Allen pintado ao estilo Andy Warhol – viva a pop art. Onde pendurarei?

Sei lá: na sala, no quarto, no banheiro, na cozinha, na sacada ou possivelmente no nicho que me serve de escritório – os cartões-postais hão de gostar da companhia. E a casa, preenchida de uma atmosfera tão diversa, habitada por tantos apelos e referências, ficará ainda mais parecida comigo.



31 de março de 2013 | N° 17388
QUASE PERFEITO | Fabrício Carpinejar

O oceano e uma conchinha

Encontrei uma senhora com sacolas de mercado subindo as escadas do hospital.

Perguntei se poderia ajudar. Minha mãe sempre me ensinou que não custa nada ser educado.

Carreguei as sacolas até o terceiro andar. Ela se despediu com um beijo em minha testa.

– Vá com Deus, meu anjo.

Fiquei levemente encabulado, minha testa estava úmida, e ela secou meu suor com seu beijo.

Içara, soube mais tarde, acompanhava seu marido André.

Ele tem câncer em estado avançado, metástase nos ossos. Situação grave.

Os dois partilham um casamento de 30 anos. São amigos de minha amiga Cíntia Moscovich.

Já testemunhei o casal abraçado, tomando vinho, comendo risoto, cantando músicas em bar no Moinhos de Vento.

Não lembrei de sua feição na hora. Quando ofereci ajuda, jurei que era uma estranha.

Mostrava-se toda abatida, acuada pela tristeza, as olheiras de coador de café.

Eu me desculpei quando a revi subindo a ladeira da Ramiro Barcelos. Expliquei que não a reconheci naquele dia.

Ela concordou comigo.

– Tampouco me reconheço, querido.

Sua simplicidade, sua humildade, sua honestidade me desarmaram.

Já não queria carregar suas sacolas, mas seus olhos.

Içara sofre monstruosidades. Sofre essa viuvez devagar. Essa viuvez vindo. Essa viuvez injusta informando seu coração pouco a pouco da tragédia.

Içara vive sendo enganada pela esperança e não desiste de acordar, dormir, acordar, dormir.

Com a fé exausta, me encarou profundamente. Colocou as mãos em meus ombros e pediu para que eu rezasse por uma coisa.

Uma única coisa. Nem era capaz de pedir para seu marido melhorar. Nem era capaz de suplicar o retorno da rotina.

Nem era doida de encomendar milagre, de que eles possam viajar para Grécia, admirar os afrescos da Itália, partilhar novamente de música, gastronomia e literatura.

Içara pede uma só coisa, uma só coisinha: dormir mais uma noite de conchinha com seu marido. Uma só noite soletrando a respiração do seu homem.

Uma só noite com as pernas entrelaçadas, as cabeças encostadas para igual horizonte. Uma só noite com a paz dos lençóis de casa e os travesseiros lavados. Uma só noite despertando ao mesmo tempo, com a mesma vontade de mate e varanda.

Só dormir de conchinha mais uma vez. Uma noite fora do hospital, do soro, do medo de morrer.

Uma noite absolutamente normal. A normalidade no amor é a perfeição.


31 de março de 2013 | N° 17388
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

O lado bom do câncer

Talvez você não saiba, mas tirei um rim. Quer dizer: eu, não; tiraram para mim. Disseram que meu rim estava apodrecido por um câncer e que precisava ser removido. Concordei, e eles o fizeram com presteza. Agora ando pelo mundo com um único rim.

O que posso dizer disso tudo é que gostava do tempo em que tinha dois rins. Não que a vida seja muito diferente com um só, mas, puxa, a Natureza sábia nos deu dois por algum motivo. Tenho que cuidar com desvelo do que me sobrou. Sei o quanto vale um rim.

O que se diz nessa hora

As pessoas me untaram com inúmeras palavras de conforto, nesse período de recuperação. Ajudaram bastante, continuam ajudando. Mas às vezes me deixaram intrigado. Vou citar algumas curiosas frases de consolo que você ouve nesse momento delicado

1. “Você vai se tornar uma pessoa melhor graças a essa experiência.”

Francamente, não quero me tornar uma pessoa melhor. Desconfio até que esteja me tornando uma pessoa pior. Sim, um homem com um rim só não se importa de ser malvado de vez em quando. Tenha cuidado com quem só tem um rim.

2. “Você vai aprender muito com isso tudo”.

Nem doutorado em Harvard custa tanto. O preço dessa lição é alto demais para mim. Prefiro a felicidade da ignorância.

3. “Nesses momentos, a nossa fé em Deus aumenta”.

Perguntei por que aumentaria. Resposta: Deus ajuda na recuperação. Certo, Ele ajuda. Mas por que, então, Ele me incrustou um câncer no rim? Não fiz nada para merecer isso. Não sou grupo de risco, não fumo, faço esporte, me alimento bem, vou almoçar com minha mãe todas as semanas. Por que o câncer??? Deus deveria ter ajudado ANTES, impedindo o câncer. Não vou recusar Sua ajuda, claro, estou precisando, mas sinto-me um pouco ressentido por ter pego um maldito câncer e, agora, por contar com apenas um rim nas minhas entranhas. Mas ressalto: quando digo isso não é nada pessoal, espero que o Senhor não deixe de me ajudar por causa dessa pequena crítica.

Feliz, mas crespo

Em todo caso, é preciso pensar positivo. Deve haver algum lado positivo em se pegar um câncer. O Gianecchini pegou um e nunca o vi tão faceiro. Escreveu um livro, aparece em tudo que é comercial, dá palestra. Era um comum, antes do câncer; agora virou personalidade. Como é que pode um cara ficar tão feliz com um câncer?

Mas ele voltou crespo, depois que se curou. Terá valido a pena?

Um câncer opera mudanças... Vá que eu volte de cabelo liso e com a cara do Gianecchini. É preciso pensar positivo.

Meu funeral

Outra coisa boa é que o câncer lhe rende homenagens póstumas. As pessoas pensam: coitado, vai morrer. E aí passam a olhá-lo pelo seu lado positivo, como se o seu passamento já tivesse ocorrido. É como se você tivesse a alegria de assistir ao seu próprio funeral. Espero que, depois, quando eu ficar bom e com a cara do Gianecchini, as pessoas continuem boazinhas comigo.

Medo de agulha

Um dia depois de sair do hospital, fui fazer uns exames de sangue complementares. A moça do laboratório me perguntou:

– Você tem medo de fazer exame de sangue?

Respondi:

– Nos últimos cinco dias rodearam o meu umbigo com fincadas de injeções, picaram as veias dos meus braços bem umas 40 vezes, enfiaram um canudo no canal do meu pênis e um dedo no meu ânus, meteram-me um dreno no flanco, abriram-me um buraco na barriga, lá de dentro tiraram meu rim e me costuraram. Não tenho medo de fazer exame de sangue.

Isso é pensar positivo, não é?

Poesia numa hora dessas

João Cabral de Melo Neto sobre o câncer:

“O câncer é aquele ônibus

Que ninguém quer mas com que se conta;

Não se corre atrás dele,

Mas quando ele passa se toma”.


31 de março de 2013 | N° 17388
PAULO SANT’ANA

Jogo de cena

Quer dizer então que, depois que o governo federal desonerou de impostos os artigos da cesta básica, ela aumentou de preço?

Pois aumentou. Como é que os supermercados vão explicar isso? Pois fica claro que os supermercados estão pondo nos seus bolsos o desaparecimento de impostos sobre a cesta básica, um fato vergonhoso, que tinha de ser apurado e punido pelas autoridades.

Prova de que isso está acontecendo é que a Agas, a própria associação que congrega os supermercadistas, publicou nota em que condena seus associados por essa trapaça.

Quer dizer, o sindicato condena seus membros e eles continuam a explorar os consumidores, parece até jogo de cena.

A irresponsabilidade de certos denunciantes é espantosa. Como a dos que denunciaram que o papa Francisco foi colaborador da ditadura argentina e até entregou para os esbirros totalitários dois padres jesuítas.

Pois eu estava vendo televisão esses dias e vi com meus olhos e ouvi com meus ouvidos o Adolfo Perez Esquivel, outro argentino, que por sinal recebeu o Nobel da Paz, dizer que é pura invenção e calúnia a acusação de que o Papa colaborou com a ditadura.

Disse mais, o que me deixou estupefato: o papa Francisco não era sequer bispo quando da ditadura.

Eu ouvi isso, dias atrás, do Prêmio Nobel.

Ora, se o papa Francisco não era ainda sequer bispo quando da ditadura, como iria entregar a ela dois jesuítas, com que autoridade?

Tudo mentira, tudo invenção, dizem que de um jornalista do periódico Página/12, de Buenos Aires.

Tudo desmentido, está completamente absolvido o nosso querido papa Chico.

Li em Zero Hora que a temperatura ambiente na boate Kiss, de Santa Maria, durante a tragédia, era de 100 graus centígrados.

Deus do céu. Calculo que o organismo humano não possa suportar essa temperatura durante dois minutos sem morrer.

Li também que o inquérito da Polícia Civil enviado à Justiça sobre a tragédia de Santa Maria contém mais de 10 mil páginas.

E que o relatório desse inquérito, as conclusões do delegado de polícia que o instruiu, ostenta 140 páginas.

Gostaria de ver publicado na íntegra esse relatório. Porque, quando fui inspetor e delegado de polícia, no que eu mais caprichava era nos relatórios, sínteses dos inquéritos.

Foi um trabalho estafante da Polícia Civil. Desejo que tenha sido também talentoso, objetivo embora minudente.

Vanderlei Luxemburgo, após o jogo contra o Pelotas, declarou que não conhecia algumas das muitas virtudes que Barcos vem mostrando no Grêmio.

Quando implorei a Fábio Koff que comprasse o passe de Barcos, modéstia à parte, eu conhecia todas as suas virtudes.

Não sei por que motivo lembrei-me de uma astuciosa frase minha: “Todo isento é colorado”.


31 de março de 2013 | N° 17388
VERISSIMO

Adeus ao trema

A reforma ortográfica acabou com o trema, e só então me dei conta de que eu nunca o tinha usado. Sempre o ignorei. Os revisores, se quisessem, que acrescentassem os tremas onde cabiam. Por vontade própria, nunca botei olhos de cobra em cima de nenhum u.

E agora que o trema desapareceu oficialmente, fiquei com remorso. Como me penitenciar? Peço só mais uma oportunidade para compensar meu descaso com o trema usando-o num texto. Li que, com a reforma, o trema só continua a ser usado legitimamente em nomes estrangeiro como Müller e Anaïs. Uma história para Müller e Anaïs, portanto. Atenção, revisor: mantenha todos os tremas.

Uma história com seqüência e conseqüência.

Talvez uma história policial: a dupla Müller e Anaïs atrás de delinqüentes.

Ou uma história de excessos eqüestres levando ao uso freqüente de ungüentos.

Ou uma simples cena doméstica. Müller e Anaïs na cozinha do seu apartamento, eqüidistantes de um pingüim em cima da geladeira. Müller acaba de chegar da rua com um pacote.

- Anaïs, esse pingüim...

- Quequitem?

- Eu não agüento esse pingüim, Anaïs.

- Ele está aí há cinqüenta anos e só agora você nota?

- Cinqüenta anos, Anaïs?

- Está bem, cinco. Um qüinqüênio.

- Um qüinqüênio?

- Um qüinqüênio. E vai ficar aí outro qüinqüênio.

- Não se usa mais pingüim em geladeira, Anaïs. É uma coisa do passado. Como o trema.

- Pois eu gosto e está acabado. O que você trouxe nesse pacote?

- O que mais poderia ser? Lingüiças. As ultimas com trema que tinham no super.

Pronto. Acho que estou redimido. Adeus, trema. E desculpe qualquer coisa.

SEIOS

Lembro de ter lido, há algum tempo, que um carregamento de seios postiços a caminho da Austrália tinha desaparecido. Não posso descrever minha alegria ao ler a notícia. Abandonei, imediatamente, toda preocupação com desastres naturais e econômicos e me entreguei a especulações sobre o fato insólito, ou, no caso, fofo. A notícia não trazia muitos detalhes. Aparentemente, tinham perdido contato com um navio carregado com 120 mil seios postiços – ou 60 mil pares, não sei. A localização do navio quando desaparecera não era revelada.

Se fosse no Oceano Indico – especulei alegremente – a explicação podia ser um ataque de piratas da Somália, que teriam ocupado o navio, aberto os seus porões, mergulhado de ponta-cabeça na carga, gritando “Alá seja louvado!” e no momento discutiam o valor do seio postiço no mercado para cobrar o resgate.

O navio poderia ter naufragado, o que imediatamente sugeria a imagem de 120 mil seios boiando no oceano.

– Piloto de avião de busca para base: acho que localizei destroços do naufrágio, boiando sugestivamente na superfície. Cambio.

Náufrago abandonado na proverbial ilha deserta vê seios e mais seios chegarem na praia. Olha para o céu, abre os braços e grita: “Que parte do meu pedido você não entendeu, Senhor?!”

Mas o maior mistério de todos era: o que 120 mil seios postiços iam fazer na Austrália? Neste ponto deixei de me divertir com a notícia. Tive uma visão pungente de 60 mil travestis australianos esperando, inutilmente, no porto.

RUTH DE AQUINO

O que os homens esperam das mulheres

"Talvez os homens sejam realmente mais básicos ou tenham expectativas mais reais. De minha parte, espero sobretudo que minha mulher me ame, seja companheira, leal, que me motive a andar para a frente, e que sejamos felizes juntos.”

Reproduzo acima o que ouvi de um amigo após a edição da revista ÉPOCA com um especial dedicado a 50 anos de feminismo. O título era “O que as mulheres esperam dos homens”. Em 1963, a mulher tentava escapar da armadilha de mãe doméstica, submissa e dependente, sem direito a divórcio. Era a pré-história da pílula anticoncepcional.

Hoje, meio século depois, me incomoda a maneira como meninas e meninos são educados pelas mães e pelos pais. A menina, desde que nasce, é “a princesinha”. Veste rosa, pinta as unhas e faz festa de castelo encantado. De tanto ouvir que é princesa, desejará um príncipe mais tarde. O menino é tratado como um super-herói, um durão. Seu nome raramente é falado no diminutivo em casa. Mimamos a “Flavinha” e estimulamos o “Paulão”. Por que a família e a escola perpetuam esses papéis e o desencontro na vida adulta?
Como o homem costuma falar menos e ocupa as posições de poder, a mídia relega os machos a um segundo plano. Isso até os favorece, porque não são tratados como um bloco homogêneo. Segundo estudos, a mulher fala 20 mil palavras por dia, e o homem 7 mil. O triplo, será? Para alguns especialistas em linguagem, isso não passa de mito. Se levarmos a generalização ao extremo, os assuntos favoritos costumam ser diferentes.

“Homem fala de futebol e mulher. Mulher fala, fala, fala...De empregada, filhos, sapatos, bolsas, cabelos, homens.” Esse é o comentário de um amigo poeta e provocador. Perguntei o que ele espera de uma mulher. “Que seja inteligente, sedutora, não fale muito e seja boa de cama.” Machista ou básico?

Também prefiro homens que não sejam tagarelas e apreciem a cama não só para dormir. Mulheres que se queixam de falta de preliminares devem perguntar-se: eu me debruço sobre o corpo de meu parceiro ou fico deitada aguardando carinhos? Mãos à obra, moças.
Tenho a impressão de que eles gostariam apenas que elas parassem de reclamar deles 

Reportagens sobre gêneros costumam concluir que “eles” estão confusos, perdidos e precisam de uma revolução, já que “elas” fizeram a sua. Será que os homens concordam? Duvido. Tenho a impressão, nada científica, de que os homens gostariam apenas que as mulheres parassem de reclamar deles o tempo todo. Ou reclamam deles ou da falta deles.

“As mulheres nunca parecem satisfeitas com nada. Se eles fazem o lanchinho do bebê, elas acham que não fazem direito. Se buscam o filho na escola, ah... por que não corrigiram o dever de casa? Uma lamúria sem fim”, disse uma amiga minha, mãe e profissional bem-sucedida, após ler ÉPOCA. “Acho as mulheres muito chatas. E os homens, à medida que vão se parecendo mais com as mulheres, ficam também cada vez mais chatos.”

Perguntei a um amigo, separado, pai de adolescentes e recém-casado novamente, como ele se sente. “De fato, é muito difícil ser esse macho ideal, que mata um leão por dia no trabalho e ainda precisa levá-la para jantar, cortejá-la, diverti-la e comê-la ardorosamente”.

O que a mulher espera de um homem mudou pouco. Encontrei, num mercado do Brooklyn, em Nova York, um cartão-postal de 1941 sobre “your ideal love mate” (seu amor ideal). A imagem é de um homem de cabelos bem cortados e gravata – bem parecido com o da capa de ÉPOCA. A descrição:

“O companheiro ideal é um homem com coração grande, caloroso. Impulsivo, mas com profundo senso de valores. Assume riscos, mas não riscos tolos. Encara suas responsabilidades sem hesitar, é honesto e gentil. Tem um talento real para aproveitar a vida e ajuda sua mulher a aproveitar a dela”. Esse perfil tem mais de 70 anos. Semelhante ao de agora?

O homem deseja o mesmo de sua mulher. Indagado sobre o segredo de 50 anos de casamento com a mesma mulher, tema de um de seus livros, o escritor americano Gay Talese respondeu: “Paciência e bom sexo”. Concordo. De ambos os lados. O ponto alto do especial de ÉPOCA é a entrevista com a socióloga americana Stephanie Coontz. O feminismo do século XXI é sobre defender pessoas e não gêneros. Há quem acredite na besteira de que o mundo é diferente quando dirigido por mulheres. Não sei onde.

A melhor pergunta hoje – especialmente quando vemos o mala do pastor Feliciano agarrado à função insustentável de defensor de direitos humanos – seria: “O que as pessoas esperam das pessoas?”. Que não sejam hipócritas é um bom começo.


30 de março de 2013 | N° 17387
NILSON SOUZA

O portal do retorno

Muitos brasileiros que saíram do país em busca de vida melhor estão voltando para casa antes de completar seus projetos. Cada indivíduo tem a sua história e as suas razões para retornar, que vão da dificuldade de adaptação ao país escolhido à crise econômica mundial, que atinge mais fortemente a Europa.

O fenômeno é tão significativo que o Itamaraty resolveu criar o Portal do Retorno, um site que oferece informações burocráticas e oportunidades de emprego aos que voltam. Bela iniciativa. Mostra que evoluímos do “ame-o ou deixe-o”, o slogan excludente e autoritário dos tempos ditatoriais, para uma visão acolhedora de mãe gentil a todos os filhos deste solo. Melhor, muito melhor assim.

Sair sempre é mais atraente do que retornar. O desafio de enfrentar o desconhecido é irresistível, especialmente para as novas gerações, que já nascem com GPS no cérebro e desconhecem as fronteiras do conformismo. Essa inquietude é que nos fez atravessar oceanos, voar, abrir picadas no espaço sideral e transformar o mundo numa aldeia global. Aplausos, portanto, para a garotada que se aventura. É daí que se pode esperar um mundo melhor.

São incontáveis, porém, os que batem com a cara na parede. Viver no Exterior nem sempre é fácil, mesmo para quem encara sem maiores transtornos as barreiras do idioma e dos costumes locais. O maior problema, de acordo com o relato dos que voltam, é o tratamento indiferente (e não poucas vezes discriminatório) que recebem. E muitos se queixam ao chegar que aqui também passam a ser tratados como estrangeiros – razão principal da medida adotada pelo governo para recepcioná-los melhor.

A verdade é que ninguém volta igual depois de viver fora do país. Mesmo aqueles que se consideram frustrados no aspecto econômico, trazem consigo uma bagagem de experiência e de conhecimentos que jamais adquiririam se tivessem ficado em casa olhando a vida passar.

O verdadeiro portal do retorno é a partida, quando se deixa para trás a rotina e se aguça os sentidos para o desconhecido. Ninguém sai para nunca mais voltar, embora esse seja o destino de muitos. E o destino, como sabemos, também é um país estranho.

Acompanhei pelas redes sociais alguns relatos de jovens sobre a volta para casa. Os que ficam acham graça das desculpas apresentadas pelos que decidiram voltar prematuramente. A maioria alega que recebeu uma “proposta irresistível” para trabalhar no Brasil. Como o nosso mercado de trabalho está aquecido, o argumento é válido e até pode ser verdadeiro em determinados casos. Na maioria das vezes, porém, a explicação esconde o constrangimento de admitir que a tentativa de vencer no Exterior não deu certo.

Compreensível. Porém, mais convincente e sincero seria usar como justificativa aquela palavrinha que só existe a língua portuguesa e que expressa magistralmente os sentimentos de perda, falta, distância e amor pela pátria: saudade.

Demos, portanto, boas-vindas aos saudosos aventureiros que retornam ao país.


30 de março de 2013 | N° 17387
PAULO SANT’ANA

Os joanetes

Tenho uma amiga que está se preparando psicologicamente para ser submetida a duas cirurgias nos pés, para extirpação de imensos joanetes.

Nos próximos dias, ela será operada, mesmo sabendo que a recuperação encerra muita dor, tanto que me lembro de que uma ex-colega minha, a Avanete, que era secretária do Armindo Ranzolin, quando se recuperava da mesma cirurgia, vinha trabalhar arrastando os pés.

Pois bem, minha amiga vai com coragem para a cirurgia, tendo consciência de que vai fazê-lo por não suportar as dores que sente com o uso de calçados.

De lambujem, minha amiga terá também um grande lucro estético, pois ainda é vaidosa: ela pensa que, depois da cirurgia, seu marido a desejará muito mais do que a deseja agora. Pressinto que os joanetes da minha amiga colaboram decisivamente para a fadiga dos metais no casamento.

Não sei qual a causa do aparecimento de joanetes nos pés. Dizem popularmente que há causas não genéticas: que entre as mulheres, mais propensas aos joanetes do que os homens, a prática do balé é causadora.

Também os sapatos femininos de bico fino e salto alto são aliados do desenvolvimento dos joanetes, que consistem no aparecimento de um osso extra e de uma bolsa líquida nos pés.

Mas eu, leigo em anatomia e ortopedia, presumo que o joanete é oriundo de uma herança genética que pode vir a ser estimulada por fatores circunstanciais.

Nunca vi homem com joanete, assim como nunca vi negros usando guarda-chuva de tecido preto, nunca vi enterro de anão, nunca vi português que tem armazém e se apaixona por mulata que não deixe o negócio nas mãos dos caixeiros, nunca vi filho de prostituta ser chamado de Júnior, nunca vi santo de óculos, nunca vi ex-corno nem ex-veado, nunca vi salário durar 30 dias, nunca vi japonesa vesga, nunca vi chester vivo e assim por diante.

Voltando à minha amiga que vai operar dois joanetes, hoje é evidente o esforço que ela faz para adquirir sapatos de couro ou plástico que ocultem de uma certa forma os joanetes. Por isso, tem uma tendência para usar tênis. O tênis serve ao conforto dos pés com joanetes e ao propósito estético. Mas não é usual uma mulher que use sempre e sempre os tênis.

Interessante é que o joanete só se instala no lado interno do pé, junto ao dedão. Nunca vi joanete no lado externo do pé, perto do mindinho por exemplo. O joanete tem uma fixação pelo dedão.

Como também nunca vi, desculpem a bobagem, joanete nas mãos, nem em pessoas que usam luvas.

Desejo felicidades à minha amiga que vai se operar. Ela transmite desde já no seu olhar um orgulho por sua coragem e pela possibilidade de ficar assim mais bela.


30 de março de 2013 | N° 17387
CLÁUDIA LAITANO

Divertimento solitário

A canção mais sexy que eu conheço não é exatamente sutil na sua abordagem do tema mais antigo do mundo. Chama-se Sexual Healing (algo como “cura pelo sexo”) e foi um enorme sucesso nos anos 80, na voz suingada do cantor americano Marvin Gaye.

O que torna a música tão sensual não é a letra explicitamente abusada, mas a combinação perfeita entre o que está sendo dito e o ritmo ondulante da melodia, que não apenas traduz o conteúdo dos versos para a linguagem musical como suaviza sua urgência com um ritmo mais sugestivo do que, digamos, apressado.

Por sugerir um sexo “quente”, para usar o termo dos americanos, mas não agressivo ou mecânico, a música de Marvin Gaye fez sucesso mesmo antes de as letras de conteúdo sexual explícito tornarem-se “mainstream” (o que vende mais) no mercado da música americana e em boa parte do resto do mundo.

No Brasil, pouco antes de Marvin Gaye estourar com Sexual Healing, Chico Buarque compôs uma canção que, na época em que foi lançada, chocou (tanto quanto fascinou, confesso) a menina de 12 anos que eu era: O Meu Amor. Imagino que algumas moças mais velhas e mais experientes também tenham ficado chocadas e fascinadas por aquela conversa despudorada entre duas mulheres que competem pelo amor de um mesmo homem enumerando os prazeres que ele é capaz de proporcionar a cada uma delas.

Composta em 1978 para o musical Ópera do Malandro, a canção não poderia deixar de ser desbocada em se tratando do diálogo entre uma prostituta e sua rival. Mas aqui também o sexo, cantado em ritmo de bolerão, faz bem para o corpo e para a alma: “Eu sou sua menina, viu?/ E ele é o meu rapaz/ Meu corpo é testemunha/ Do bem que ele me faz”.

Sexo, como o amor, não é um tema fácil de cantar, embora quase todo mundo acredite que entende do assunto – ou exatamente por causa isso. A chance de chover no molhado, sem trocadilhos, é muito maior do que a de produzir algo que chame atenção.

Pois mais de 30 anos depois de O Meu Amor, voltei a ser impactada por uma letra que fala de sexo ao ouvir esta semana a música Então se Joga, cantada por um jovem sertanejo chamado Henrique Costa, que além de torturar uma velha canção dos Talking Heads acabou maltratando mais ainda a própria ideia do sexo como algo divertido que duas pessoas fazem juntas.

Nessa, como em outras letras “proibidonas” do funk carioca e do pagode, permanece a urgência, que sempre existiu e deve continuar existindo enquanto nossa espécie habitar este planeta, mas resta pouco espaço para o sexo como resultado do desejo mútuo – com toda a incerteza e chance de fracasso que isso pode implicar. Essas letras falam sobre festas em que os rapazes esperam que as meninas bebam muito para “liberar geral”, e as moças, quando a voz é delas, demonstram estar mais interessadas em exibir poder do que em serem seduzidas.

O sexo “da balada” parece deixar de ser uma relação que envolve brincadeira, ritmo, tempo, sedução, para se tornar uma espécie de divertimento solitário praticado a dois.

Algo assim como tentar tocar a Quinta de Beethoven batucando numa caixinha de fósforos.

sexta-feira, 29 de março de 2013


CLÓVIS ROSSI - COLUNISTA DA FOLHA

Dilma só disse na África o que sempre pensou e até já disse

O que a presidente Dilma Rousseff disse na África do Sul sobre inflação e crescimento é rigorosamente o que ela pensa -e faz tempo, pelo menos desde que assumiu, há dois anos e três meses.

Não há, portanto, nenhuma razão nem para polêmica, nem para surpresa, nem para "manipulação", a não ser que a presidente tenha usado essa última palavra para se referir à especulação nos mercados. O lado cassino dos mercados, aliás, é suficientemente forte, para dispensar frases da presidente -felizes ou infelizes- nas apostas.

A primeira mais firme manifestação de Dilma em favor do crescimento se deu, curiosamente, às margens de outra cúpula dos Brics, a de abril de 2011 na China.

O governo mal completara cem dias, mas já estava em dúvida o empenho do Banco Central em trazer a inflação para o centro da meta, 4,5% então como agora.

No Fórum de Boao, considerado "Davos" da Ásia, Dilma reafirmou que são fundamentais "o controle da inflação e a estabilidade fiscal", para depois deixar claro que ambos não são um fim em si mesmo nem valor absoluto.

"Tem quer ter como objetivo criar condições para o crescimento e a inclusão social", disse. Nesse ponto, a presidente afirmou, com outras palavras, o que repetiria em Durban, ao criticar "políticas restritivas tanto nos países emergentes para conter a inflação como nos países avançados para promover a consolidação fiscal".

A presidente fez questão de se dizer favorável "ao controle da inflação e à estabilidade fiscal", desde que o objetivo seja crescimento com inclusão social, que é "questão-chave para todos nós".

Também na China Dilma deu por sepultados "os consensos que se criaram na história recente. Sob a égide do mercado ou do Estado, mostraram-se frágeis como castelos de cartas".

Não receitou, no entanto, um novo consenso, até porque afirmou não buscar "modelos únicos nem tampouco unanimidades". A única receita é fácil de dizer, difícil de descobrir: "O mundo do século 21 requer criatividade".

Vê-se agora que nem Dilma nem o mundo tiveram criatividade suficiente para pôr de pé outro modelo, se está superada, como ela crê, a política de "matar o doente [com juros altos] em vez de curar a doença [a inflação]".

Na vida real, a queda dos juros, praticada por seu governo, foi incapaz até agora de acelerar o crescimento. Pior: a "doença" da inflação parece mais viva e forte.

Mas é injusto dizer que a presidente é leniente com a inflação. Nenhum governante o é, desde que se tornaram famosos dois gráficos que Getúlio Bittencourt, então assessor de imprensa do presidente José Sarney, exibia a todos: a popularidade do presidente apontava para baixo sempre que a inflação embicava para cima e vice-versa.

Como não há político que não adore a popularidade, todos querem a inflação domesticada. Dilma também quer, desde que o crescimento não seja afetado no percurso. Como perpetrar a mágica é a matéria em que o governo está ficando em segunda época.

ROBERTO RODRIGUES

Meu porto, minha vida

A medida provisória dos portos tem boa chance de obter avanços. Espera-se que logo as filas de caminhões sejam coisa do passado

Chega a ser espantosa a reação geral quanto ao recorrente fenômeno do congestionamento de caminhões no porto de Santos. Afinal, todo ano isso acontece, e não só em Santos, mas também em Paranaguá.

Há anos, os mais diversos especialistas comentam que o principal gargalo do agronegócio brasileiro é infraestrutura e logística. E vêm pedindo rapidez na implementação das obras do PAC ligadas ao tema.

E neste ano, com uma safra recorde de grãos (especialmente da soja, uma vez que colheremos 85 milhões de toneladas, superando pela primeira vez a safra americana), era superevidente que teríamos esse triste espetáculo das filas quilométricas para descarregar nos portos.

Além disso, ao largo do porto, dezenas de navios ancorados esperam para carregar os grãos oriundos das competitivas zonas produtoras, ou para descarregar os fertilizantes que os mesmos caminhões levarão de volta àquelas regiões, para que seus agricultores já se preparem para a safra do ano que vem.

Com isso, os produtores perdem duas vezes: como os caminhões demoram para descarregar a soja -ou o milho-, acabam servindo de armazém. Mas um armazém caríssimo, evidentemente, sem falar na irritação que toma os motoristas que perdem tempo, dinheiro e ficam mais dias longe de casa.

Mas também perdem pela demora do descarregamento de fertilizantes dos navios, pois cada dia parado ao largo tem um custo, chamado "demurrage", que vai a dezenas de milhares de reais por dia. Ora, quem paga isso? O produtor, é lógico, uma vez que esse custo adicional lhe é repassado no preço do fertilizante.

É claríssima, então, a perda dos agricultores em geral, representada pelos custos inflados e em função de um problema sobre o qual eles não têm nenhuma responsabilidade. Os mais prejudicados são os produtores de regiões distantes, uma vez que as cargas vêm por caminhão, muito mais caro do que trem, que também não há suficientemente.

Pelo menos parte do custo também é repassada aos consumidores, de modo que todo mundo perde.

Mas há algo ainda mais grave. No ano passado, o agronegócio brasileiro teve um saldo de US$ 79 bilhões em sua balança comercial externa: essa é a diferença positiva entre o que o setor exportou e importou. E o saldo comercial total do Brasil foi de US$ 19 bilhões, incluído o agronegócio. Ou seja, o desempenho do agro salvou o saldo do país e, de quebra, garantiu as reservas cambiais.

Portanto, quanto mais o agronegócio exportar, melhor será para o país. Não apenas para o agricultor, mas para todos os brasileiros, que se beneficiam do fato.

Outro dado: há dez anos, em 2002, o agronegócio exportou US$ 24,8 bilhões. No ano passado, US$ 95,8 bilhões, quase quatro vezes mais. Ora, de novo todo o país e seus cidadãos ganham com esse crescimento, que cria riquezas, renda e empregos diretos e indiretos.

E, se deixarmos de exportar, sofrem todos os brasileiros.

As dificuldades de logística já fizeram a China cancelar dez navios de soja encomendadas ao Brasil, ameaçando fazer o mesmo com outros tantos ou mais. E se a moda pega?

Bem, depois de anos de incisivas reclamações de técnicos e exportadores, o governo finalmente tomou decisões importantes quanto às concessões na área de rodovias e ferrovias, abrindo ao setor privado uma oportunidade de investir com lucro. Isso vai acontecer, mas demora, não só pelo fato em si (projeto e execução), mas também pela burocracia, especialmente das licenças ambientais.

E, por último, o governo e o Congresso estão trabalhando vigorosamente em uma medida provisória que busca equacionar o problema dos portos, com boa chance de obter avanços notáveis. Aliás, nos últimos dias as filas até melhoraram com essa perspectiva.

Esperamos que, em três ou quatro anos, as filas intermináveis sejam coisa do passado. E todos os brasileiros possam se beneficiar do aumento das exportações e, com orgulho, dizer: "Meu porto, minha vida"...

ROBERTO RODRIGUES, 70, engenheiro agrônomo, é coordenador do Centro de Agronegócio da Fundação Getulio Vargas.